Questões de Literatura - Vanguardas europeias
Leia o poema em prosa “Conto cruel”, de Mário Quintana, para responder à questão
Conto cruel
I
De repente, o leite talhou nos vasilhames. Foi um raio? Foi Leviatã? Foi o quê?
O burgomestre1, debaixo das cobertas, resfolegava orações meio esquecidas.
E os negros monstros das cornijas2, com as faces zebradas de relâmpagos, silenciosamente gargalhavam por suas três ou quatro bocas superpostas.
II
E amanheceu um enorme ovo, em pé, no meio da praça, três palmos mais alto que os formosos alabardeiros3 que lhe puseram em torno para evitar a aproximação do público. Foi chamado então o velho mágico, que escreveu na casca as três palavras infalíveis. E o ovo abriu-se ao meio e dele saiu um imponente senhor, tão magnificamente vestido e resplandecente de alamares e crachás que todos pensaram que fosse o Rei de Ouros. E ei-lo que disse, encarando o seu povo: “Eu sou o novo burgomestre!” Dito e feito. Nunca houve tanta dança e tanta bebedeira na cidade. Quanto ao velho burgomestre, nem foi preciso depô-lo, pois desapareceu tão misteriosamente como havia aparecido o novo, ou o ovo. E os menestréis compuseram divertidas canções, que o populacho berrava nas estalagens, entre gargalhadas e arrepios de medo.
III
Mas por onde andaria o burgomestre?
O seu cachimbo de porcelana, em cujo forno se via um Cupido de pernas trançadas, tocando flauta, foi encontrado à beira-rio. E apesar de todos os esforços, só conseguiram pescar um baú, que não tinha nada a ver com a coisa, e uma sereiazinha insignificante e nada bonita, uma sereiazinha de água doce, que nem sabia cantar e foi logo devolvida ao seu elemento.
Mas quando casava a filha do mestre-escola, encontrou- -se dentro do bolo de noiva a dentadura postiça do burgomestre, o que deu azo a que desmaiassem, no ato, duas gerações inteiras de senhoras, e ao posterior suicídio do pasteleiro.
E a caixa de rapé do burgomestre, que era inconfundível e única, multiplicou-se estranhamente e começou a ser achada em todas as salas de espera desertas, pelos varredores verdes de terror, depois que era encerrado o expediente nas repartições públicas e começava a ouvir-se, na rua, o passo trôpego do acendedor de lampiões.
(Melhores poemas, 2005.)
1 burgomestre: prefeito.
2 cornija: moldura sobreposta, formando saliências, que arremata a parte
superior de uma parede, porta.
3 alabardeiro: soldado armado de alabarda (antiga arma composta de longa
haste, que é rematada por peça pontiaguda de ferro).
A presença do elemento onírico no poema de Mario Quintana revela a influência, sobretudo, da seguinte vanguarda europeia:
Essa vanguarda baseia-se na crença na realidade superior das formas específicas de associação, antes negligenciadas, na onipotência dos sonhos e no jogo desinteressado do pensamento. André Breton, seu principal teórico, afirmou que o propósito dessa vanguarda era “resolver a contradição até agora vigente entre sonho e realidade pela criação de uma realidade absoluta, uma supra-realidade.”
(Ian Chilvers (org.). Dicionário Oxford de arte, 2007. Adaptado.)
O texto trata de uma vanguarda que influenciou inúmeros escritores do Modernismo brasileiro, qual seja,
As vanguardas europeias foram movimentos pioneiros, precursores dos “modernismos” que se expandiram no mundo ocidental no século XX. No que diz respeito ao Modernismo Brasileiro, a estética surrealista influenciou poetas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Aníbal Machado, Murilo Mendes.
São características do Surrealismo, como movimento de vanguarda,
1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade.
2. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia.
3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco.
4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.
5. Nós queremos entoar hinos ao homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada também numa corrida sobre o circuito da sua órbita.
6. E preciso que o poeta prodigalize com ardor, fausto e munificiência, para aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.
MARINETTI, F. T. Manifesto futurista. In: TELES, G. M. Vanguardas europeias e Modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1985.
O documento de Marinetti, de 1909, propõe os referenciais estéticos do Futurismo, que valorizam a
A pintura do artista brasileiro utiliza elementos
de estética de uma das Vanguardas Europeias,
a saber o
Um sonho
Eu tive um sonho esta noite que não quero esquecer,
por isso o escrevo tal qual se deu:
era que me arrumava para uma festa onde eu ia falar.
O meu cabelo limpo refletia vermelhos,
o meu vestido era num tom de azul, cheio de panos, lindo,
o meu corpo era jovem, as minhas pernas gostavam
do contato da seda. Falava-se, ria-se, preparava-se.
Todo movimento era de espera e aguardos, sendo
que depois de vestida, vesti por cima um casaco
e colhi do próprio sonho, pois de parte alguma
eu a vira brotar, uma sempre-viva amarela,
que me encantou por seu miolo azul, um azul
de céu limpo sem as reverberações, de um azul
sem o ‘z’, que o ‘z’ nesta palavra tisna.
Não digo azul, digo bleu, a ideia exata
de sua seca maciez. Pus a flor no casaco
que só para isto existiu, assim como o sonho inteiro.
Eu sonhei uma cor.
Agora, sei.
PRADO, Adélia. Bagagem. 26. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 75.
O poema de Adélia Prado é modernista, ao passo que a pintura de Salvador Dalí é