Um hábito cultural brasileiro e suas consequências
O tráfico de animais no Brasil: até onde um hábito nocivo deve ser preservado como patrimônio cultural? (Texto adaptado)
[1] Uma cena comum no Brasil todo, e considerada
até bonita por muitos, é a da casinha com gaiolas
de passarinhos penduradas para fora. Para muitos,
essa cena mostra o amor do dono da casa pela na-
[5] tureza e pelos animais. E, na maioria das vezes, o
amor é real e a pessoa nem imagina as conse-
quências que estão por trás do simples fato de
comprar um passarinho em uma feira-livre. No en-
tanto, devido ao imenso volume do comércio ilegal
[10] de animais silvestres brasileiros, esse hábito apa-
rentemente inocente acaba sendo responsável por
sustentar uma das maiores ameaças à biodiversi-
dade brasileira.
Atualmente, a demanda por animais silvestres
[15] vivos para suprir o mercado de animais de estima-
ção é a modalidade de comércio ilegal que mais in-
centiva o tráfico de animais silvestres no Brasil. Va-
le lembrar que espécies da fauna silvestre são dife-
rentes das espécies domesticadas pelo homem há
[20] milhares de anos. Para que uma espécie passe a
ser considerada doméstica (e não amansada ou
domada) é necessário que ocorra seleção de cer-
tas características, com diferenciação genética e
fenotípica, a ponto de se tornar uma espécie distin-
[25] ta da parental, como ocorreu com gatos, cachorros,
bois, porcos, etc..
Como mencionado, a retirada de muitos animais
silvestres de forma regular da natureza não ape-
nas gera sofrimento animal, mas pode ter conse-
[30] quências ambientais bastante graves, com ameaça
de extinções locais ou extinção da espécie como
um todo, até desequilíbrios ecológicos com conse-
quências econômicas.
Os animais mais procurados pelo comércio ile-
[35] gal para animais de estimação no Brasil são as
aves canoras, papagaios, araras, répteis como
iguanas e cobras, e pequenos mamíferos, como
saguis e macacos-prego. No entanto, as aves são
de longe os maiores alvos do comércio ilegal não
[40] só pela enorme demanda – é um traço cultural do
brasileiro querer possuir aves de gaiola em casa –
mas também por sua riqueza e relativa facilidade
de captura.
Apesar de ser uma atividade tão relevante, es-
[45] timativas confiáveis acerca do volume do tráfico de
animais no Brasil ainda são escassas. A principal e
mais citada fonte de informação publicada ainda é
o 1º Relatório Nacional sobre o Tráfico de Animais
Silvestres, lançado em 2002, pela Rede de Comba-
[50] te ao Tráfico de Animais Silvestres – RENCTAS.
Neste relatório, os autores estimaram que todos os
tipos de exploração ilegal de animais silvestres se-
riam responsáveis pela retirada de 38 milhões de
animais da natureza brasileira, número que não in-
[55] clui peixes ou insetos.
Os principais defensores da manutenção de a-
nimais silvestres como animais de estimação ale-
gam que este é um traço cultural do brasileiro e,
como tanto, deveria ser preservado. Contudo, a
[60] meu ver, culturas são dinâmicas e devem evoluir.
Obviamente patrimônio cultural valioso como músi-
ca, dança, histórias, tradições, receitas, entre ou-
tros devem ser mantidos. No entanto, costumes
claramente nocivos podem e precisam evoluir. Ou
[65] alguém argumenta que (guardadas as devidas pro-
porções) escravidão, mulheres que não trabalha-
vam e não tinham direito a voto, ausência de con-
trole de natalidade, palmadas em crianças, racismo
e homofobia deveriam ser mantidos como patrimô-
[70] nio cultural porque um dia fizeram parte dos cos-
tumes aceitos em nossa sociedade?
Há uma corrente que propõe que animais sil-
vestres sejam reproduzidos em cativeiro com fins
comerciais, o que, de acordo com os defensores
[75] desta ideia, não apenas supriria a demanda por a-
nimais silvestres de estimação, como criaria uma
indústria poderosa que, entre outros benefícios,
criaria empregos, geraria impostos e movimentaria
indústrias relacionadas. Por agora é importante
[80] ressaltar que, enquanto discutimos o assunto cal-
mamente, milhares de animais sofrem maus-travos
e nossa biodiversidade está sendo erodida seve-
ramente e sem retorno.
* A autora do texto é bióloga, mestre e doutora em Genética, Diretora Executiva da Freeland Brasil e colaboradora da SOS Fauna.
Quanto à tonicidade, a palavra papagaios (ℓ. 36) poderá se agrupar a