Medo de ser feliz
Paulo Sant’Ana
[1] Confesso que sou quase escravo do medo. Quando vou ao dentista e fico por uma hora e meia sofrendo um
tratamento de canal, sinto umas 40 vezes ataque de medo pânico. E, no entanto, não me dói uma única vez durante
os 90 minutos. Ocorre então um fenômeno: com os 40 ataques de medo que tenho, acabo sofrendo muito mais do
que se doesse o tratamento da minha dentista. Sei que arrisco ser chamado de idiota. Só não se agrava mais essa
[5] minha desvantagem pelo fato de que o medo é intrínseco à conduta humana, é quase impossível viver sem medo de
qualquer coisa.
Sobre o medo, Shakespeare tem uma sentença genial: “O covarde (pessimista) morre mil vezes antes de
morrer”. É isto mesmo. Quando sinto medo do dentista, isso equivale exatamente à dor que sentiria se o dentista
tocasse com o ferro no nervo do meu dente. Ou seja, o medo é um sofrimento, uma dor. Pior, é uma dor que não
[10] acontece, mas sabem os medrosos o quanto dói.
Quando me retorço na cadeira da dentista, ela me pergunta: “Está doendo?”. Eu respondo: “Não, estou com
medo”. O que vem a ser a mesma coisa: de que adianta não estar doendo se o medo é às vezes até pior que a dor?
E o pior é aquele medo que se tem de determinada coisa trágica que nos possa acontecer, ela acaba não
acontecendo em meses ou anos, mas nós sentimos tanto medo de que ela ocorreria, que esse medo nos causa um
[15] dano às vezes maior do que a coisa trágica que temíamos.
Eu sei que se afirma com razão que a maior defesa do corpo humano é o medo. Muitas vezes, se você não
tivesse medo de atravessar a rua, seria atropelado. Mas é que essa função protetiva do medo humano tem a
concorrência do medo nocivo, como, por exemplo, o homem que tem medo de se submeter a uma cirurgia, não se
submete a ela e por isso acaba morrendo por incúria.
[20] O medo, portanto, é positivo e é negativo. O fato é que quase nenhum vivente deixa de ter medo. Os
corajosos, os intrépidos, assim mesmo guardam algum medo. Conheci uma mulher que tinha medo de engravidar,
no entanto o seu maior desejo e ideal era engravidar. Mas é que ela achava que não iria poder administrar a gravidez
e temia a ideia de que não pudesse fazer cesariana e tivesse que sofrer as dores do parto. Vejam vocês, nesse caso,
o conteúdo fantástico do medo: a mulher sabia que ter um filho significava a sua ansiada felicidade. Mas tinha como
[25] oponente à felicidade justamente o medo.
Eu não tenho dúvida de que a posição mais importante na conduta humana é o medo. Chega a tal ponto a
importância do medo na vida humana, que há pessoas que vivem aterrorizadas com a possibilidade de virem a ter
medo de alguma coisa. Tanto até, que o samba e a filosofia consagram a expressão: “Medo de ser feliz”. E tanto isso
é verdade, que conheço inúmeras pessoas, entre elas eu, que têm medo de vir a ganhar a Mega Sena. Não é uma
[30] idiotice? Estudem bem a questão e verão que não.
(Zero Hora, p. 59, 1 fev. 2012. – Texto adaptado.)
Com base no texto, pode-se inferir que