Leia o texto a seguir.
OS PRIVILEGIADOS DA TERRA
[1] O fragmento de satélite artificial – só podia ser de
[2] satélite – caído sobre o povoado transformou de
[3] repente a vida dos moradores, que não chegavam a
[4] trezentos.
[5] Repórteres e cinegrafistas cobriram o fato com o
[6] maior relevo. Não houve ninguém que deixasse de
[7] dar entrevista: mesmo as crianças.
[8] O fiscal do Governo apareceu para recolher o
[9] pedaço de coisa inédita, mas foi obstado pelo juiz de
[10] paz, que declarou aquilo um bem da comunidade. A
[11] população rendeu guarda ao objeto e jurou defender
[12] sua posse até o último sopro de vida.
[13] A força policial enviada para manter a ordem aderiu
[14] aos moradores, pois seu comandante era filho do lugar.
[15] Acorreram turistas, pessoas dormiam na rua por falta
[16] de acomodação, surgiram batedores de carteira, que
[17] foram castigados, e começou a correr o boato de que
[18] aquele corpo metálico tinha propriedades mágicas.
[19] Quem chegava perto dele seria fulminado, se fosse
[20] mau caráter; conquistava a eterna juventude, se fosse
[21] limpo de coração; e certa ardência que se evolava da
[22] superfície convidava ao amor.
[23] Não se desprendeu de satélite, diziam uns; veio
[24] diretamente do céu, emanado de uma estrela,
[25] alvitravam outros. De qualquer modo, era dádiva
[26] especial para o lugarejo, pois ao tombar não ferira
[27] ninguém, não partira uma telha, nem se assustaram
[28] os animais domésticos com a sua vinda insólita.
[29] Tudo acabou com o misterioso desaparecimento da
[30] coisa. Seus guardas foram tomados de letargia e, ao
[31] recobrarem a consciência, viram-se despojados do
[32] grande bem. Mas tinham assimilado esse bem e
[33] passaram a viver de uma alegria inefável, que ninguém
[34] lhes poderia roubar. Eram os privilegiados da Terra.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
Em “...uma alegria inefável, que ninguém...” (linha 33), a classe gramatical da palavra sublinhada é