Texto 1
Quando eu nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.
(de Poema das Sete Faces)
Texto 2
O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater no poeta federal.
Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.
(Política Literária)
Texto 3
Era uma vez um czar naturalista que caçava homens,
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.
(Anedota Búlgara)
Texto 4
Eu não devia te dizer
mas essa lua mas esse conhaque
botam a gente comovido como ao diabo.
(de Poema das Sete Faces)
Texto 5
João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia. Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.
(Quadrilha)
Texto 6
Não faças versos sobre acontecimentos
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol, estático.
Não aquece nem ilumina.
( de Procura da Poesia)
Texto 7
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poemas são meus. De todo o orgulho.
( de Consideração do Poema)
Texto 8
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
Como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão do indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
( de Mundo Grande)
Texto 9
Não é o canto da andorinha, debruçada
Nos telhados da Lapa,
Anunciando que tua vida passou à toa, à toa.
(de O Sentimento do Mundo)
Carlos Drummond de Andrade. Nova Reunião: 19 livros de poesia. Rio de Janeiro – José Olympio, 1983.
I – Em sentido figurado, a palavra gauche (em francês, esquerdo) serve para nomear um indivíduo um tanto quanto desajeitado, impermeável à realidade circundante, que não se abre ao próximo, característica que, no entanto, fica limitada aos poemas iniciais de Drummond e, portanto, ausente do restante da obra.
II – O texto 2, que faz lembrar o poema-piada de Oswald de Andrade, deixa claro, justamente, o tom de anedota, mas os versos não ultrapassam a dimensão humorística, sendo, portanto, descompromissados com algum sentido ou intenção crítica por parte do poeta.
III – No texto 3, a maneira despretensiosa do autor, como que contando um “causo” (que, aliás, inicia-se à maneira de uma história destinada a crianças), não o impede de aludir à desvalorização do ser humano, nivelado a borboletas e andorinhas.