TEXTO 1
DA PAZ
Eu não sou da paz.
Não sou mesmo não. Não sou. Paz é coisa de rico. Não visto camiseta nenhuma, não, senhor. Não solto
pomba nenhuma, não, senhor. Não venha me pedir para eu chorar mais. Secou. A paz é uma desgraça.
Uma desgraça.
Carregar essa rosa. Boba na mão. Nada a ver. Vou não. Não vou fazer essa cara. Chapada. Não vou rezar.
Eu é que não vou tomar a praça. Nessa multidão. A paz não resolve nada. A paz marcha. Para aonde
marcha? A paz fica bonita na televisão. Viu aquela atriz? No trio elétrico, aquele ator?
Se quiser, vá você, diacho. Eu é que não vou. Atirar uma lágrima. A paz é muito organizada. Muito
certinha, tadinha. A paz tem hora marcada. Vem governador participar. E prefeito. E senador. E até
jogador. Vou não.
Não vou.
A paz é perda de tempo. E o tanto que eu tenho para fazer hoje. Arroz e feijão. Arroz e feijão. Sem contar
a costura. Meu juízo não está bom. A paz me deixa doente. Sabe como é? Sem disposição. Sinto muito.
Sinto. A paz não vai estragar o meu domingo.
A paz nunca vem aqui, no pedaço. Reparou? Fica lá. Está vendo? Um bando de gente. Dentro dessa fila
demente. A paz é muito chata. A paz é uma bosta. Não fede nem cheira. A paz parece brincadeira. A paz
é coisa de criança. Tá uma coisa que eu não gosto: esperança. A paz é muito falsa. A paz é uma senhora.
Que nunca olhou na minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. A paz é muito branca.
A paz é pálida. A paz precisa de sangue.
Já disse. Não quero. Não vou a nenhum passeio. A nenhuma passeata. Não saio. Não movo uma palha.
Nem morta. Nem que a paz venha aqui bater na minha porta. Eu não abro. Eu não deixo entrar. A paz está
proibida. Proibida. A paz só aparece nessas horas. Em que a guerra é transferida. Viu? Agora é que a
cidade se organiza. Para salvar a pele de quem? A minha é que não é. Rezar nesse inferno eu já rezo.
Amém. Eu é que não vou acompanhar andor de ninguém. Não vou.
Não vou.
Sabe de uma coisa: eles que se lasquem. É. Eles que caminhem. A tarde inteira. Porque eu já cansei. Eu
não tenho mais paciência. Não tenho. A paz parece que está rindo de mim. Reparou? Com todos os terços.
Com todos os nervos. Dentes estridentes. Reparou? Vou fazer mais o quê, hein?
Hein?
Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo
lá embaixo. Carregando na avenida a minha ferida. Marchar não vou, muito menos ao lado de polícia.
Toda vez que vejo a foto do Joaquim, dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um cisco no
peito. Sem fim. Uma dor. Dor. Dor. Dor.
Dor.
A minha vontade é sair gritando. Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus! Matando todo mundo. É. Todo
mundo. Eu matava, pode ter certeza. Todo mundo. Mas a paz é que é culpada. Sabe?
A paz é que não deixa.
FREIRE, Marcelino. Da paz. Disponível em:<http://cinismocotidiano.blogspot.com.br/2010/03/abandonos-e-da-paz-marcelino-freire.html>. Acesso: 27 set. 2016.
Assinale a opção em que aparece a mesma figura de linguagem daquela que é encontrada nos seguintes trechos grifados: “Toda vez que vejo a foto do Joaquim, dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um cisco no peito.”