Um mundo sem utopias
(Jaime Pinsky)
[1] O processo civilizatório se desenvolve desde que existe o ser humano. A descoberta do fogo, a
invenção da roda, a domesticação de animais, a elaboração de deuses, a estruturação das cidades foram
marcos na história da humanidade.
Mas, depois da fala, dificilmente encontraremos fatores civilizatórios mais importantes do que a
[5] criação, a racionalização e a universalização da palavra escrita. Por meio dela, o homem se tornou capaz não
apenas de produzir cultura como de guardá-la de modo eficiente e de, mais ainda, transmiti-la aos
contemporâneos e às gerações seguintes.
Com a escrita, tornava-se mais fácil apresentar descobertas, descrever invenções, divulgar técnicas,
expor ideias, confessar fraquezas, compartilhar sentimentos.
[10] Praticada, inicialmente, apenas por elites, a escrita espalhava com muita parcimônia o saber
acumulado, uma vez que o conservadorismo dos detentores do poder bloqueava a democratização dos
avanços na cultura material e imaterial.
Com os papiros e pergaminhos, inicialmente, e mais tarde com o papel e, mais ainda, com a
imprensa de tipos móveis, a cultura, no sentido de patrimônio acumulado, passou a alcançar um número
[15] cada vez maior de pessoas, democratizando o saber e dando oportunidades a uma parcela importante da
população. Sem a palavra escrita, em geral, e sem o livro, em particular, a história não teria sido a mesma.
Ao longo do século 19, nos países mais desenvolvidos, as pessoas foram aprendendo a ler e a
escrever. A desvalorização do trabalho braçal, substituído por máquinas, o crescimento do setor de serviços,
o aumento da produtividade das cidades: o mundo parecia caminhar para uma realidade sonhada pelos
[20] utopistas.
Ao ler livros, ao escrever cartas, ao redigir o resultado de reflexões complexas, os cidadãos
compartilhavam ideias e sentimentos, tão mais densos quanto mais habilitados estivessem nas técnicas da
escrita e da leitura. Era permitido sonhar com uma sociedade universal de gente alfabetizada, com
oportunidades de ascensão social determinadas apenas pelos seus méritos. Não por acaso é o momento das
[25] grandes utopias igualitárias.
Já no século 21, as utopias parecem coisas de um passado remoto. Mesmo não gostando do mundo
como está, parece que desistimos de mudá-lo. Vivemos ou em sociedades consumistas, ou burocráticas, ou
fundamentalistas. Fingimos que a felicidade pode ser encontrada comprando mercadorias, obedecendo a
regras, ou acreditando em um improvável mundo pós-morte.
[30] Jogamos no lixo milhares de anos de avanço civilizatório e nos transformamos em meros
consumidores de softwares. Estamos perdendo a habilidade de ler textos complexos, nos conformamos com
a pobreza da linguagem das redes sociais.
Em nome da interatividade, sentimo-nos qualificados a ser banais. Sem leituras sérias, abdicamos do
patrimônio cultural da humanidade, arduamente construído ao longo de milênios.
[35] Não precisamos sequer de um Grande Irmão para ordenar a queima de livros: queimamos nossas
estantes, por inúteis. E nem as substituímos por livros digitais, já que vamos deixar o saber apenas para os
criadores de software.
(PINSKY, Jaime. Um mundo sem utopias. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 ago. 2015.)
A palavra escrita