Leia o texto a seguir.
[1] O Murinho
[2] A princípio, o território neutro do edifício Jandaia
[3] era ocupado por mamães e babás, capitaneando
[4] inocentes que iam tomar a fresca da tarde; à noite,
[5] vinham empregadas em geral, providas de namorados
[6] civis e militares.
[7] Mas, impõem-se a descrição sumária do território:
[8] simples área pavimentada em frente ao edifício,
[9] separando-se da calçada por uma pequena amurada
[10] de menos de dois palmos de altura, tão lisa que
[11] convidava a pousar e repousar. Os adultos cediam
[12] ao convite, e ali ficavam praticando sobre o tempo,
[13] a diarreia infantil, a exploração nas feiras, os
[14] casamentos e descasamentos da semana. (Na parte
[15] da tarde.) Ou não conversavam, pois outros meios
[16] de comunicação se estabeleciam naturalmente na
[17] sombra, mormente se o poste da Light, que ali se alteia,
[18] falhava a seu destino iluminatório, o que era frequente.
[19] ( Na parte da noite.)
[20] Na área propriamente dita, a garotada brincava,
[21] e era esse o título de glória do Jandaia. Sem
[22] playground, oferecia, entretanto, a todos, de casa ou
[23] de fora, aquele salão a céu aberto, onde qualquer
[24] guri pulava, caía, chorava, tornava a pular, até que a
[25] estrela Vésper tocava gentilmente a recolher, numa
[26] sineta de cristal que só as mães escutam – as mães
[27] sentadas no “murinho”, nome dado à mureta
[28] concebida em escala de anão.
[29] E assim corria a Idade de Ouro, quando
[30] começaram a surgir, no expediente da tarde, uns
[31] rapazinhos e brotinhos de uniforme colegial, que foram
[32] tomando posse do terreno. Esse bando tinha o
[33] dinamismo próprio da idade - e, pouco a pouco,
[34] crianças, babás e mãezinhas se eclipsaram. Os
[35] invasores falavam essa língua alta e híbrida, forjada
[36] no mundo inteiro, com raízes no cinema, no esporte,
[37] na coca-cola e nos gritos guturais que se desprendem
[38] – quem não os distingue? – dos quadros “mudos” de
[39] Brucutu e Steve Roper. Divertido, mas um pouco
[40] assustador. E, à noite, por sua vez, fuzileiros e copeiras
[41] tiveram de ir cedendo campo à horda que se renovava.
[42] Os moradores do Jandaia começaram a queixar-
[43] se. O porteiro saiu a parlamentar e desacataram-no.
[44] A rua era pública. Sentavam no murinho com os pés
[45] para fora. Não faziam nada de mal, só cantar e
[46] assobiar. Os chatos que pirassem.
[47] Ouvindo-se tratar de chatos, por trás da cortina,
[48] os moradores indignaram-se. O telefone chamou a
[49] rádio-patrulha, que foi rápida, mas a turminha ainda
[50] mais: ao chegar o carro, o porteiro estava falando
[51] sozinho.
[52] No dia seguinte, não houve concentração juvenil,
[53] mas, já na outra tarde, meio cautelosos, eles
[54] reapareceram. A esse tempo, a rua se dividira. Havia
[55] elementos solidários com a gente do Jandaia e outros
[56] que defendiam a nova geração; estes argumentavam
[57] que a rapaziada era pura: em vez de bebericar nos
[58] bares, batia papo inocente à luz das estrelas. Preferível
[59] à grudação dos casais suspeitos, que antes
[60] envergonhava a rua.
[61] Mas o Jandaia tinha moradores idosos e enfermos,
[62] aos quais aquela bulha torturava; tinha também
[63] rapazes e meninas, que preferiam estudar e não
[64] podiam. Por que os engraçadinhos não iam fazer isso
[65] diante de suas casas?
[66] Como não houvesse condomínio, e os moradores
[67] dos fundos, livres da algazarra, se mostrassem
[68] omissos, uma senhora do segundo andar assumiu a
[69] ofensiva e txááá! um balde de água suja conspurcou
[70] a camisa-esporte dos rapazes e o blue jeans das
[71] garotas. Consternação, raiva, debandada – mas, no
[72] dia seguinte, voltaram. E voltaram e tornaram a voltar.
[73] Ontem, pela manhã, um pedreiro começou a furar
[74] o cimento do murinho e a colocar nele uma grade de
[75] ferro, de pontas agudas. Vaquinha dos mártires do
[76] Jandaia? Não: outra iniciativa pessoal de um deles,
[77] coronel reformado e solteirão. “Logo vi que ele não
[78] tem filho!” – comentou uma das garotas, com
[79] desprezo. Mas a turma está desoladíssima, e nunca
[80] mais ninguém ousará sentar no murinho – nem mesmo
[81] as mansuetas babás e mamãs, nem mesmo os casais
[82] noturnos.
ANDRADE, Carlos Drummond. Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
Na linha 81, a palavra “mansuetas” só não pode ser entendida como