TEXTO – Saúde e paz: a busca por um discurso mobilizador
Ao se contemplar o panorama histórico do enfrentamento às violências na sociedade brasileira não é difícil constatar que um dos nós críticos continua a ser a ausência de um discurso capaz de aglutinar vontades políticas e mobilizar compromissos e esforços individuais, coletivos e institucionais. As propostas estritamente focadas em atuação policial, arcabouço legal e/ou aparato prisional ainda hoje predominam no senso comum, tendo por premissa a demonização do perpetrador de violência — com especial veemência se o mesmo for pobre, preto ou da periferia. Essa perspectiva fundamenta um discurso no qual não existe qualquer espaço para a ação cidadã, o diálogo social ou a participação coletiva.
A primeira proposição é que tal discurso deve enunciar o que se almeja, não se limitando apenas a negar o indesejado. Em outras palavras, deve focalizar a paz (o que se quer), ao invés da violência (o que não se quer). A rejeição ou negação do indesejado, por mais intensa que seja, é incapaz de gerar o desejado. A ausência de violência não implica surgimento da paz. Quem quer a paz? Quem não quer a paz? Se fizermos essas perguntas a muitas pessoas, constataremos que todas afirmarão desejar a paz. Contraditoriamente, se todos dizem querer a paz, por que ela é tão difícil de ser alcançada?
As respostas são muitas. É possível perguntar se há sinceridade entre os que afirmam querer a paz e seus múltiplos entendimentos. Uma situação ditatorial pode ser considerada mais pacífica do que um ambiente democrático, no qual as divergências são visíveis? Além disso, geralmente a violência só é reconhecida em suas expressões físicas ou criminosas — portanto, se não houver agressões corporais ou crimes, considerar-se-á que a paz já tenha sido alcançada, mesmo que persistam situações como miséria, fome ou racismo.
Outro motivo que pode ser apontado é que há certa acomodação dos que desejam a paz. Além disso, há, ainda, a crença de que o ser humano é inerentemente violento. Se acreditamos nisso, como é possível nos engajarmos, sinceramente, na construção da paz? Temos, assim, algumas assertivas que podem ocupar a centralidade do discurso: a violência não é inerente à espécie humana; consequentemente, ela pode ser prevenida e superada. A violência tanto quanto a paz são comportamentos aprendidos e valores socialmente construídos e possuidores de uma dimensão ética e moral. Cooperação, diálogo, solidariedade, diversidade, generosidade e empatia favorecem a construção de uma cultura de paz. E isso tem a ver com saúde.
O discurso da paz deve ser centrado na “promoção de uma cultura de paz”, da mesma forma que a Saúde Pública prioriza a “promoção da saúde”. Entendemos que a adoção de um discurso de promoção da cultura de paz não significa o abandono das ações de prevenção da violência. Trata-se de reconhecer o lugar epistemológico de cada um — a cultura de paz tem o papel da utopia que inspira, mobiliza e norteia, é o propósito final de uma multiplicidade de esforços; a prevenção da violência é uma das estratégias que contribuirão para a sua concretização.
Profissionais e gestores de saúde, acadêmicos e autoridades governamentais vêm reconhecendo crescentemente que as violências precisam ser enfrentadas como um problema de Saúde Pública. Esse setor tem desempenhado papel cada vez mais ativo na definição de políticas públicas e programas direcionados a diversas modalidades de violência — tentando ultrapassar as tradicionais tarefas de assistência às vítimas e elaboração de análises epidemiológicas para adentrar, finalmente, nos campos da prevenção da violência e da educação em saúde focada na promoção da paz.
Isso não significa que uma questão tão complexa e multicausal como as violências possa ser responsabilidade ou domínio exclusivo do setor Saúde, mas sim que compete a este desempenhar um papel de articulação dos demais setores envolvidos com a problemática — tanto governamentais, quanto da sociedade civil organizada e da iniciativa privada — em uma atuação integrada e sinérgica.
É nesse momento histórico, de transição de papéis e formas de atuação, que se torna premente a necessidade de um novo discurso — intersetorial, transdisciplinar, em contínuo processo de elaboração e revisão — capaz de aglutinar novos e tradicionais atores sociais e mobilizar vontades políticas e compromissos coletivos em favor de um dos pré-requisitos mais importantes da saúde: a paz.
(MILANI, Feizi Masrour. Saúde: a busca por um discurso mobilizador. Radis. Nº128. maio de 2013)
O título Saúde e paz: a busca por um discurso mobilizador se justifica porque: