Questões de Português - Leitura e interpretação de textos - Gêneros textuais - Verbais/Narrativos - conto
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o major citava o prestígio que meu pai gozava entre os subordinados. A todo o oficialato ele se impunha pelo exemplo, como ao sacrificar suas horas de repouso e lazer no recesso do lar para se ocupar dos seus prisioneiros noite adentro. O major explicava à minha mãe que esses delinquentes, tanto homens quanto mulheres, ficavam horas pendurados numa barra de ferro, mais ou menos como frangos no espeto. (p. 162)
Considerando que o conto faz referência à década de 1970, o trabalho do pai do narrador, mencionado no trecho acima, consiste em:
Conceição Evaristo nasceu numa favela da zona sul de Belo Horizonte. Trabalhava como empregada doméstica, até concluir o Curso Normal, já então com 25 anos. Mudou-se para o Rio de Janeiro, tendo estudado Letras em uma universidade pública, a UFRJ. Suas obras abordam temas como discriminação racial, de gênero e de classe. A pobreza e a vulnerabilidade da população afro-brasileira, envolvendo mulheres e homens, é a tônica da autora em Olhos D’Água.
O conto Maria serve de base para responder à questão.
MARIA
Maria estava parada há mais de meia hora no ponto do ônibus. Estava cansada de esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a caminhada. O preço da passagem estava aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos.
[...]
Quando o ônibus apontou lá na esquina, Maria abaixou o corpo, pegando a sacola que estava no chão entre as suas pernas. O ônibus não estava cheio, havia lugares. Ela poderia descansar um pouco, cochilar até a hora da descida. Ao entrar, um homem levantou lá de trás, do último banco, fazendo um sinal para o trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem dele e de Maria. Ela reconheceu o homem. Quanto tempo, que saudades! Como era difícil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem sentou-se a seu lado. Ela se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. Da barriga enorme que todos diziam de gêmeos, e da alegria dele. Que bom! Nasceu! Era um menino! E haveria de se tornar um homem. Maria viu, sem olhar, que era o pai de seu filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar assustado não se fixando em nada e em ninguém. Sentiu uma mágoa imensa. Por que não podia ser de uma outra forma? Por que não podiam ser felizes? E o menino, Maria? Como vai o menino? cochichou o homem. Sabe que sinto falta de vocês? Tenho um buraco no peito, tamanha a saudade! Tou sozinho! Não arrumei, não quis mais ninguém. Você já teve outros... outros filhos? A mulher baixou os olhos como que pedindo perdão. É. Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém também.
[...]
O homem falava, mas continuava estático, preso, fixo no banco. Cochichava com Maria as palavras, sem, entretanto, virar para o lado dela. Ela sabia o que o homem dizia. Ele estava dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filho, de vida, de morte, de despedida. Do buraco-saudade no peito dele... Desta vez ele cochichou um pouquinho mais alto. Ela, ainda sem ouvir direito, adivinhou a fala dele: um abraço, um beijo, um carinho no filho. E, logo após, levantou rápido sacando a arma. Outro lá atrás gritou que era um assalto. Maria estava com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida. Tinha três filhos. O mais velho, com onze anos, era filho daquele homem que estava ali na frente com uma arma na mão. O de lá de trás vinha recolhendo tudo. O motorista seguia a viagem. Havia o silêncio de todos no ônibus. Apenas a voz do outro se ouvia pedindo aos passageiros que entregassem tudo rapidamente. O medo da vida em Maria ia aumentando. Meu Deus, como seria a vida dos seus filhos?
[...]
Os assaltantes desceram rápido. (...). Ela não conhecia assaltante algum. Conhecia o pai de seu primeiro filho. Conhecia o homem que tinha sido dela e que ela ainda amava tanto. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois. Outra voz vinda lá do fundo do ônibus acrescentou: Calma, gente! Se ela estivesse junto com eles, teria descido também. Alguém argumentou que ela não tinha descido só para disfarçar. Estava mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. Mentira, eu não fui e não sei por quê. Maria olhou na direção de onde vinha a voz e viu um rapazinho negro e magro, com feições de menino e que relembravam vagamente o seu filho. A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono da voz levantou e se encaminhou em direção à Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não conhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha! Lincha! Lincha!... Uns passageiros desceram e outros voaram em direção à Maria. O motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira:
— Calma pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os filhos... Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. Será que os meninos iriam gostar de melão? Tudo foi tão rápido, tão breve, Maria tinha saudades de seu ex-homem. Por que estavam fazendo isto com ela? O homem havia segredado um abraço, um beijo, um carinho no filho. Ela precisava chegar em casa para transmitir o recado. Estavam todos armados com facas a laser que cortam até a vida. Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher estava todo dilacerado, todo pisoteado. Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um carinho.
EVARISTO, Conceição. Olhos D’Água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016.
Em “Ouviu uma voz: negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois.” e “Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha! Lincha! Lincha!...” , a seleção vocabular dos fragmentos revela, com veemência, por parte dos demais personagens da cena narrada, uma atitude (de)
Conceição Evaristo nasceu numa favela da zona sul de Belo Horizonte. Trabalhava como empregada doméstica, até concluir o Curso Normal, já então com 25 anos. Mudou-se para o Rio de Janeiro, tendo estudado Letras em uma universidade pública, a UFRJ. Suas obras abordam temas como discriminação racial, de gênero e de classe. A pobreza e a vulnerabilidade da população afro-brasileira, envolvendo mulheres e homens, é a tônica da autora em Olhos D’Água.
O conto Maria serve de base para responder à questão.
MARIA
Maria estava parada há mais de meia hora no ponto do ônibus. Estava cansada de esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a caminhada. O preço da passagem estava aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos.
[...]
Quando o ônibus apontou lá na esquina, Maria abaixou o corpo, pegando a sacola que estava no chão entre as suas pernas. O ônibus não estava cheio, havia lugares. Ela poderia descansar um pouco, cochilar até a hora da descida. Ao entrar, um homem levantou lá de trás, do último banco, fazendo um sinal para o trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem dele e de Maria. Ela reconheceu o homem. Quanto tempo, que saudades! Como era difícil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem sentou-se a seu lado. Ela se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. Da barriga enorme que todos diziam de gêmeos, e da alegria dele. Que bom! Nasceu! Era um menino! E haveria de se tornar um homem. Maria viu, sem olhar, que era o pai de seu filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar assustado não se fixando em nada e em ninguém. Sentiu uma mágoa imensa. Por que não podia ser de uma outra forma? Por que não podiam ser felizes? E o menino, Maria? Como vai o menino? cochichou o homem. Sabe que sinto falta de vocês? Tenho um buraco no peito, tamanha a saudade! Tou sozinho! Não arrumei, não quis mais ninguém. Você já teve outros... outros filhos? A mulher baixou os olhos como que pedindo perdão. É. Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém também.
[...]
O homem falava, mas continuava estático, preso, fixo no banco. Cochichava com Maria as palavras, sem, entretanto, virar para o lado dela. Ela sabia o que o homem dizia. Ele estava dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filho, de vida, de morte, de despedida. Do buraco-saudade no peito dele... Desta vez ele cochichou um pouquinho mais alto. Ela, ainda sem ouvir direito, adivinhou a fala dele: um abraço, um beijo, um carinho no filho. E, logo após, levantou rápido sacando a arma. Outro lá atrás gritou que era um assalto. Maria estava com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida. Tinha três filhos. O mais velho, com onze anos, era filho daquele homem que estava ali na frente com uma arma na mão. O de lá de trás vinha recolhendo tudo. O motorista seguia a viagem. Havia o silêncio de todos no ônibus. Apenas a voz do outro se ouvia pedindo aos passageiros que entregassem tudo rapidamente. O medo da vida em Maria ia aumentando. Meu Deus, como seria a vida dos seus filhos?
[...]
Os assaltantes desceram rápido. (...). Ela não conhecia assaltante algum. Conhecia o pai de seu primeiro filho. Conhecia o homem que tinha sido dela e que ela ainda amava tanto. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois. Outra voz vinda lá do fundo do ônibus acrescentou: Calma, gente! Se ela estivesse junto com eles, teria descido também. Alguém argumentou que ela não tinha descido só para disfarçar. Estava mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. Mentira, eu não fui e não sei por quê. Maria olhou na direção de onde vinha a voz e viu um rapazinho negro e magro, com feições de menino e que relembravam vagamente o seu filho. A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono da voz levantou e se encaminhou em direção à Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não conhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha! Lincha! Lincha!... Uns passageiros desceram e outros voaram em direção à Maria. O motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira:
— Calma pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os filhos... Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. Será que os meninos iriam gostar de melão? Tudo foi tão rápido, tão breve, Maria tinha saudades de seu ex-homem. Por que estavam fazendo isto com ela? O homem havia segredado um abraço, um beijo, um carinho no filho. Ela precisava chegar em casa para transmitir o recado. Estavam todos armados com facas a laser que cortam até a vida. Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher estava todo dilacerado, todo pisoteado. Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um carinho.
EVARISTO, Conceição. Olhos D’Água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016.
No início do conto, primeiro parágrafo, a personagem Maria não é definida, nem apresentada ao leitor, porque o enunciador tem a expectativa de
Mais iluminada que outras
Tenho dois seios, estas duas coxas, duas mãos que me são muito úteis, olhos escuros, estas duas sobrancelhas que preencho com maquiagem comprada por dezenove e noventa e orelhas que não aceitam bijuterias. Este corpo é um corpo faminto, dentado, cruel, capaz e violento. Movo os braços e multidões correm desesperadas. Caminho no escuro com o rosto para baixo, pois cada parte isolada de mim tem sua própria vida e não quero domá-las. Animal da caatinga. Forte demais. Engolidora de espadas e espinhos.
Dizem e eu ouvi, mas depois também li, que o estado do Ceará aboliu a escravidão quatro anos antes do restante do país. Todos aqueles corpos que eram trazidos com seus dedos contados, seus calcanhares prontos e seus umbigos em fogo, todos eles foram interrompidos no porto. Um homem — dizem e eu ouvi e depois também li — liderou o levante. E todos esses corpos foram buscar outros incômodos. Foram ser incomodados.
ARRAES, J. Redemoinho em dia quente. São Paulo: Alfaguara, 2019.
Nesse texto, os recursos expressivos usados pela narradora
Leia o texto a seguir para responder à questão.
Quebrando o silêncio dos hospícios
Stella do Patrocínio, apesar de ser reconhecida postumamente como poeta, nunca se definiu assim e não escreveu nenhuma das linhas que estão no livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, pelo qual ficou conhecida. A potência de suas palavras se encontra no seu falatório (como chamava suas falas), que foi preservado em fitas de áudio pela artista plástica Carla Guagliardi. As conversas entre as duas foram gravadas durante oficinas de arte para pacientes psiquiátricos, entre 1986 e 1988, e o livro, publicado muitos anos depois da morte de Patrocínio, é um recorte de frases dela, transcritas desses diálogos.
As falas de Patrocínio são de uma mulher negra e pobre que foi levada à força pela polícia e internada, no Centro Pedro 2º e depois na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, onde ficou por trinta anos; quando morreu, foi enterrada como indigente. A história de Patrocínio é a história de milhares de vítimas que foram encarceradas nos hospícios brasileiros por serem consideradas “desajustadas”. Em sua maioria negras. Ali, elas sofreram abusos, violências e torturas, além de serem abandonadas pelo Estado.
(Adaptado de: Quebrando o silêncio dos hospícios. Quatro cinco um, 05/2022, p. 27.)
Com base ainda no texto, “falatório” pode ser considerado como
Notas
Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões d'água benta, o fechar do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e traspassam e apertam as correias, O rodar do coche, o rodar dos carros, um a um... Isto que parece um simples inventário eram notas que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar que não escrevo.
ASSIS M Memórias póstumas de Brás Cubas Disponivel em: vaww dominiopublico.gov.brAcasso em 25 jul, 2022.
O recurso linguístico que permite a Machado de Assis considerar um capítulo de Memórias póstumas de Brás Cubas como inventário é a
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