O medo é um sentimento conhecido de toda criatura viva. Os seres humanos compartilham essa experiência com os animais. Os estudiosos do comportamento animal descrevem, de modo altamente detalhado, o rico repertório de reações dos animais à presença imediata de uma ameaça que ponha em risco suas vidas. Os humanos, porém, conhecem algo mais além disso: uma espécie de medo de “segundo grau”, um medo, por assim dizer, social e culturalmente “reciclado”, um “medo derivado” que orienta seu comportamento, haja ou não uma ameaça imediatamente presente. O medo secundário pode ser visto como um rastro de uma experiência passada de enfrentamento de uma ameaça direta — um resquício que sobrevive ao encontro e se torna um fator importante na modelagem da conduta humana mesmo que não haja mais uma ameaça direta à vida ou à integridade.
Zygmunt Bauman. Medo líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 9 (com adaptações).
Seria gramaticalmente correta a inserção de uma vírgula logo após a palavra “humana” (último período).
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.
No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.
- Sabe o que tenho aqui?
- Não.
- Uma pratinha que mamãe me deu.
- Hoje?
- Não, no outro dia, quando fiz anos...
- Pratinha de verdade?
- De verdade.
(...) Você quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos... Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada. Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, - e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, - parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, — mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado…
(...)
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.
- Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
- Diga-me isto só, murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.
- Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.
Machado de Assis. Conto de escola. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, v. II, 1994.
A linguagem empregada no conto segue a norma culta e corresponde a mais de uma função comunicativa, como a predominantemente poética em “metemos o nariz no livro” e a apelativa em “Não se esqueçam que estávamos então no fim da Regência”, no primeiro parágrafo.
Livre dos piuns das doenças amolantes,
Com dinheiro sobrando, organizava
As poucas viagens que desejo... Iria
Viajar todo esse Mato Grosso grosso,
[5] Danado guardador da indiada feia,
E o Paraná verdinho... Ara, si acaso
Tivesse imaginado no que dava
A Isidora, não vê que ficaria
Na expectativa pança em que fiquei!
[10] Revoltoso banzando em viagens tontas,
Ao menos o meu sul conheceria,
Pampas forraginosos do Rio Grande
E praias ondejantes do Iguaçu...
Tarde, com os cobres feitos com teu ouro,
[15] Paguei subir pelo Amazonas... Mundos
Desbarrancando, chãos desbarrancados,
Aonde no quiriri do mato brabo
A terra em formação devora os homens...
Este refrão dos meus sentidos... Nada
[20] Matutarei mais sem medida, ôh tarde,
Do que essa pátria tão despatriada!
Vibro! Vibro. Mas constatar sossega
A gente. Pronto, sosseguei. O forde
Recomeça tosando a rodovia.
[25] “Nosso ranchinho assim tava bom”... Sonho...
Já sabe: desejando sempre... Um sítio,
Colonizado, sem necessidade
De japoneses nem de estefanóderis...
Que desse umas quatorze mil arrobas...
[30] Já me bastava. Gordas invernadas
Pra novecentos caracus bem…
Tarde,
Mário de Andrade. Louvação da Tarde. Apud Antonio Candido. O discurso e a cidade. Apêndice 2. São Paulo: Duas Cidades, 1993. p. 311-312.
No poema Louvação da Tarde, Mário de Andrade reformula a tradição inglesa do lirismo reflexivo ao mesmo tempo em que marca a incorporação das recentes conquistas de liberdade formal. Essa forma segura, menos combativa e pitoresca faz parte de uma síntese crítica na qual o poeta contempla alguns dos valores da tradição e reorganiza sua poética em função da expressividade interior.
Nos versos de 19 a 21, percebe-se um ritmo de regularidade métrica que aumenta o sentido lírico do que é “sem medida”, mas persiste como “refrão” e se impõe de forma intuitiva.
As desigualdades digitais refletem, reproduzem ou espelham desigualdades sociais mais amplas, constituindo, desde o final do século XX, mais um lócus de estratificação social no Brasil. Além do acesso à Internet e da posse de equipamentos digitais adequados, o chamado “letramento digital” também é um fator de desigualdade, uma vez que nem todos os usuários têm familiaridade com as tecnologias — dispositivos, redes de conexão, aplicativos, plataformas — para saber manejá-las corretamente. Os usos das tecnologias são muito diversos e se relacionam com diferenças ligadas a escolaridade, capital cultural, idade, tipo de inserção profissional, entre outras variáveis. Saber fazer um currículo em um editor de texto online, organizar e catalogar correios eletrônicos ou mesmo realizar pesquisas na Internet em fontes confiáveis (desviando-se das chamadas fake news) ainda são habilidades desigualmente aprendidas na sociedade brasileira, tornando-se um “privilégio” de alguns grupos sociais.
Renata Mourão Macedo e Carolina Parreiras. Desigualdades digitais e educação. In: Ciência Hoje, edição n.º 383, dez./2021 (com adaptações).
Com relação aos sentidos e aos aspectos linguísticos do texto precedente, julgue o item a seguir.
O desenvolvimento de habilidades associadas aos usos das tecnologias constitui privilégio de parcela da população do Brasil.
As desigualdades digitais refletem, reproduzem ou espelham desigualdades sociais mais amplas, constituindo, desde o final do século XX, mais um lócus de estratificação social no Brasil. Além do acesso à Internet e da posse de equipamentos digitais adequados, o chamado “letramento digital” também é um fator de desigualdade, uma vez que nem todos os usuários têm familiaridade com as tecnologias — dispositivos, redes de conexão, aplicativos, plataformas — para saber manejá-las corretamente. Os usos das tecnologias são muito diversos e se relacionam com diferenças ligadas a escolaridade, capital cultural, idade, tipo de inserção profissional, entre outras variáveis. Saber fazer um currículo em um editor de texto online, organizar e catalogar correios eletrônicos ou mesmo realizar pesquisas na Internet em fontes confiáveis (desviando-se das chamadas fake news) ainda são habilidades desigualmente aprendidas na sociedade brasileira, tornando-se um “privilégio” de alguns grupos sociais.
Renata Mourão Macedo e Carolina Parreiras. Desigualdades digitais e educação. In: Ciência Hoje, edição n.º 383, dez./2021 (com adaptações).
Com relação aos sentidos e aos aspectos linguísticos do texto precedente, julgue o item a seguir.
No último período do texto, o emprego do pronome “se”, em “desviando-se” e “tornando-se”, tem a finalidade de marcar que o sujeito oracional é, em ambos os casos, indeterminado.
As desigualdades digitais refletem, reproduzem ou espelham desigualdades sociais mais amplas, constituindo, desde o final do século XX, mais um lócus de estratificação social no Brasil. Além do acesso à Internet e da posse de equipamentos digitais adequados, o chamado “letramento digital” também é um fator de desigualdade, uma vez que nem todos os usuários têm familiaridade com as tecnologias — dispositivos, redes de conexão, aplicativos, plataformas — para saber manejá-las corretamente. Os usos das tecnologias são muito diversos e se relacionam com diferenças ligadas a escolaridade, capital cultural, idade, tipo de inserção profissional, entre outras variáveis. Saber fazer um currículo em um editor de texto online, organizar e catalogar correios eletrônicos ou mesmo realizar pesquisas na Internet em fontes confiáveis (desviando-se das chamadas fake news) ainda são habilidades desigualmente aprendidas na sociedade brasileira, tornando-se um “privilégio” de alguns grupos sociais.
Renata Mourão Macedo e Carolina Parreiras. Desigualdades digitais e educação. In: Ciência Hoje, edição n.º 383, dez./2021 (com adaptações).
Com relação aos sentidos e aos aspectos linguísticos do texto precedente, julgue o item a seguir.
Os sentidos e a correção gramatical do texto seriam preservados caso o seu terceiro período fosse reescrito da seguinte maneira: Os usos das tecnologias são diversos demais e relacionam-se as diferenças ligadas à escolaridade, ao capital cultural, à idade, ao tipo de inserção profissional e etc.