— Que ventura! — então disse ele, erguendo as mãos ao céu — que ventura, podê-lo salvar!
O homem que assim falava era um pobre rapaz, que
ao muito parecia contar vinte e cinco anos, e que, na franca
[5] expressão de sua fisionomia, deixava adivinhar toda a
nobreza de um coração bem formado. O sangue africano
refervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia
da escravidão; e embalde*
o sangue ardente que herdara de
seus pais, e que o nosso clima e a servidão não puderam
[10] resfriar, embalde — dissemos — se revoltava; porque se
lhe erguia como barreira — o poder do forte contra o
fraco!…
(...)
E o mísero sofria; porque era escravo, e a
[15] escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os
sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no
coração, permaneciam intactos, e puros como a sua alma.
Era infeliz; mas era virtuoso; e por isso seu coração
enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe
[20] ofereceu à vista.
Reunindo todas as suas forças, o jovem escravo
arrancou de sob o pé ulcerado do desconhecido o cavalo
morto, e, deixando-o por um momento, correu à fonte para
onde uma hora antes se dirigia, encheu o cântaro, e com
[25] extrema velocidade voltou para junto do enfermo, que com
desvelado interesse procurou reanimar. Banhou-lhe a
fronte com água fresca, depois de ter com piedosa bondade
lhe colocado a cabeça sobre seus joelhos. Só Deus
testemunhava aquela cena tocante e admirável, tão cheia de
[30] unção e de caridoso desvelo! E ele continuava a sua obra
de piedade, esperando ansioso a ressurreição do
desconhecido, que tanto o interessava.
Finalmente seu coração pulsou de íntima satisfação;
porque o mancebo, pouco e pouco revocando a vida, abriu
[35] os olhos lânguidos pela dor, e os fitou nele, como que
estupefato e surpreso do que via.
Deixou fugir um breve suspiro, que talvez a pesar
seu se lhe destacasse do coração, e sem proferir uma
palavra de novo cerrou os olhos.
(...)
[40] Entretanto o negro redobrava de cuidados de novo
aflito pela mudez do seu doente. E o dia crescia mais, e o
sol, requeimando a erva do campo, abrasava as faces
pálidas do jovem cavaleiro, que, soltando um outro gemido
mais prolongado e mais doído, de novo abriu os olhos.
[45] Tentou, então, erguer-se envergonhado de uma
fraqueza a que irremissivelmente qualquer um cederia;
porém desalentado e amortecido foi cair nos braços do
compassivo escravo, única testemunha de tão longas dores
[50] e desmaios, e que em silêncio o observava. Mas esta
segunda síncope, menos prolongada que a primeira, não
afligiu tanto ao mísero rapaz, que dedicadamente o
reanimava. A febre começou a tingir de rubor aquela fronte
pálida, dando vida fictícia a uns olhos, que um momento
antes pareciam descair para o túmulo.
[55] — Quem és? — perguntou o mancebo ao escravo
apenas saído do seu letargo. — Por que assim mostras
interessar-te por mim?!…
*em vão, inutilmente
Maria Firmina dos Reis. Úrsula. Cia. das Letras, 2018, p. 54-6 (com adaptações).
Tendo como referência o texto apresentado, extraído do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, julgue o item.
A expressão “o dia crescia mais” (ℓ.42) tem caráter metafórico e foi empregada para denotar o entardecer.