TEXTO
Atravessamos tempos cruciais para os destinos da humanidade. O contexto da pandemia escancarou a
crise do capitalismo, o fracasso do projeto ultraneoliberal, o capitalismo do desastre, da universalização do
mal-estar com o agravamento das desigualdades e com aumento exponencial da fome e da miséria, que
poderá atingir mais 1 bilhão de pessoas além dos 3 bilhões de seres humanos em insegurança alimentar,
[5] aumento da concentração de renda, crise climática extrema, avanço da extrema-direita global e ameaças às
democracias.
Essa realidade exige um amplo diálogo entre as forças democráticas e populares para a construção de uma
nova governança global em torno de uma agenda de enfrentamento das desigualdades, da crise climática
e do avanço da extrema-direita no mundo.
[10] A América Latina tem se constituído como epicentro de grandes batalhas políticas no século XXI por ter
sido a região que teve os mais radicais experimentos de governos neoliberais, das ditaduras da década de
1970 até a aplicação do consenso econômico neoliberal, o chamado Consenso de Washington, com seu
ideário, entre outros, de disciplina fiscal, redução de gastos públicos, abertura comercial, juros de mercado,
câmbio de mercado, privatização das estatais, desregulamentação das leis econômicas e trabalhistas, direito
[15] à propriedade intelectual encarados como forças naturais, inexoráveis, às quais todos os países devem se
subordinar.
As disputas políticas na região marcaram a emergência de governos antineoliberais, que impulsionaram
uma agenda de enfrentamento das desigualdades intoleráveis para os interesses do capital.
Busca-se uma perspectiva da gestão social da riqueza, uma revisão até mesmo do regime de propriedade, a
[20] democratização do acesso aos bens – da sua propriedade, do seu controle e de sua gestão.
A pandemia da covid-19, para além de evidenciar a crise do capitalismo, colocou na agenda global
o enfrentamento da desigualdade abissal, a luta por políticas de direitos universais, sintetizada no
entendimento mais amplo de que o direito universal à saúde é estratégico e deve ser compreendido como
bem comum, a saúde como direito universal, e não como mercadoria.
[25] A situação inadmissível da iniquidade da distribuição das vacinas condenará a humanidade a uma pandemia
perene com o recorrente surgimento de novas cepas. Essa realidade impõe a urgência não apenas de medidas
como suspensão e/ou quebra das patentes como uma das dimensões estratégicas para o enfrentamento das
desigualdades e proteção da saúde dos povos, mas, principalmente, uma direção participativa e coordenada
de todas as nações na gestão dos estoques existentes de imunizantes.
[30] País de passado colonial e escravista, o Brasil carrega vivo o peso desse passado. Após quase 400 anos da
escravidão como base do sistema produtivo, o País não se livrou das feridas que moldam a sua alma. A
mudança na base produtiva e nas relações de trabalho não foram suficientes para solucionar os problemas
decorrentes da escravidão e do modelo extrativista e agroexportador. Ainda estão abertas as chagas da
injustiça, da exploração, da crueldade e do preconceito. A conformação das estruturas fundiárias e urbanas,
[35] as relações sociais, o arcabouço institucional e as interações com o ambiente são marcas de uma sociedade
extremamente desigual, predatória e sem projeto para além da exaustão dos recursos disponíveis, incluindo
aí as pessoas reduzidas à categoria de peças de uma grande engrenagem que moe vidas, paisagens, sonhos
e afetos.
Ainda estão entre nós, e bastante atuantes, as figuras execráveis do capitão do mato e do bandeirante. Os
[40] poderes materiais e simbólicos que operavam a manutenção de uma ordem oligárquica e patrimonialista,
não obstante o verniz de uma frágil democracia, permanecem intocados e resistentes ao avanço de uma
democracia de fato.
Com a pandemia da covid-19, houve a um só passo a aceleração e a deslegitimação do projeto liberal-
conservador. Por um lado, o embrutecimento de um capitalismo de desastre intensificou o vínculo orgânico
[45] das corporações de mercado com as forças militarizadas, cada vez mais presentes na conjuntura política do
país; por outro, o drama da pandemia tornou possível que o SUS viesse ao centro da consciência democrática
de milhões de brasileiras e brasileiros. Sem dúvida, esse deslocamento abriu a oportunidade para que a
cultura democrática sanitarista amplie os sentidos do seu programa no cotidiano das trabalhadoras e dos
trabalhadores.
[50] Neste início de século XXI, o princípio universalista da tradição sanitária brasileira, fortemente consciente
das opressões materiais classistas, tem um encontro a ser consolidado com as novas formas de luta por
cidadania, como o antirracismo, o antipatriarcalismo e a resistência ao colonialismo. A luta socialista contra
as várias formas de opressão humana deve ter na tradição sanitarista brasileira o seu momento máximo
de afirmação, formando uma luta coerentemente anticapitalista, antipatriarcal e antirracialista, ampliando
[55] assim o seu elo com o poder radical popular.
Centro Brasileiro de Estudos em Saúde. Disponível em: https://cebes.org.br/tese-2021-22-cebes-reafirma-a-luta-civilizacao-contra-barbarie/28043/. Acesso em 20 dez.2023. (Fragmento).
A passagem que evidencia um juízo de valor do enunciador está indicada em: