A senhora imagine, por favor. Eu tinha dezenove anos. Podia ter mais ou menos, podia ter quinze ou quarenta, essa questão do tempo já não se resolve mais do modo normal para mim, nem me preocupo em saber quantos anos tenho hoje, pode arriscar um palpite, se quiser, pouco me importa, sei que tinha dezenove anos porque a data ficou marcada em vermelho naquele calendário ali, na parede, veja. Aliás, devia rasgar isso, vou rasgar, pronto, rasguei, pode conferir, rasguei o calendário, apaguei o tempo assim, num passe de mágica,agora não saberemos nada do passado remoto, anterior à data marcada naquele ex-calendário, em breve não nos lembraremos mais sequer de que dia é hoje, em que ano estamos, vou fazê-la esquecer de tudo, em breve seremos quase eternos.
Era uma noite fria, eu estava no metrô, voltando do cinema, não devia ser muito tarde, dez e meia, onze horas, estava com sono, como sempre me acontecia ao sair do cinema, agora não vou mais ao cinema, há milênios não vejo um filme. [...]
Havia pouca gente no metrô, eu estava sentado sozinho numa fileira de bancos duplos, encostado à janela, não queria pensar
em nada, ver nada, só queria ficar quieto, feito um cão sob a marquise num dia de chuva, enroscado em si mesmo, se aquecendo, eu não pensava em nada, via o escuro do túnel pela janela do metrô e os anúncios nas estações quando o trem parava, anúncios gigantes, luminosos. Um deles era de uma churrascaria e fiquei puto, desculpe o linguajar, sei que não gosta desses termos chulos, mas fiquei muito puto quando vi aquele anúncio, um espeto enorme, com a carne sangrando. Senti uma dor na boca do estômago, estava com fome, naquele dia só tinha almoçado, e mal, não tinha um centavo no bolso, só conseguiria algum dinheiro no dia seguinte e o dia seguinte ainda demoraria horas para chegar, aquela foto me acertou um direto na barriga, o cara que botou aquilo ali acabara de me dar um soco, o filho da puta, perdão.
[…] Eu às vezes abordava uns turistas e os mais ingênuos acabavam me aceitando como guia, o que me rendia alguns trocados, vez ou outra ajudava num bar perto de onde eu morava, servia os fregueses, ajudava no balcão quando um funcionário faltava, também trabalhei distribuindo na rua aqueles panfletos de propaganda, na Saara, fazia coisas desse tipo, bicos, nada muito sério, na verdade minha principal fonte de renda, digamos assim, vinha dos livros que eu vendia para os sebos e, vez ou outra, para algum colecionador.
Os livros eu roubava das bibliotecas. Era um ladrão de livros, ladrãozinho de terceira categoria mas ladrão, roubava de bibliotecas públicas, ou de universidades, vez ou outra arriscava uma livraria também, era um trabalho agradável, se me permitir que chame de trabalho aquele exercício de mudar o endereço dos livros. Meu ganho era mínimo, uma ninharia, mas meus gastos também eram mínimos, de modo que aquilo era o suficiente pelo menos para me manter vivo, e naquela época eu não queria muito mais do que isso, estar vivo.
CARNEIRO, Flávio. A confissão. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. p. 11-14. (Adaptado).
Com base no trecho do romance A Confissão, pode-se reconhecer como características discursivas do texto