Leia o texto a seguir.
Mania de Perseguição
Não sei se sou azarado ou sortudo. Se é verdade
que, numa boa parte da vida, comi do pão que o
diabo amassou, devo admitir, hoje, vendo de longe,
[5] que foi melhor comer isso que nada.
De qualquer modo, por essa ou outra razão
qualquer, ando ultimamente com uma espécie de
miniparanoia, considerando-me, mais que os outros,
vítima frequente da Lei de Murphy. Por exemplo:
[10] no momento mesmo em que, aproveitando que os
carros vêm longe, atravesso a rua, tem sempre um
outro cara que decide atravessar, no mesmo instante,
em sentido contrário e na minha direção! Sou, então,
obrigado a desviar dele e já aí os carros se
[15] aproximaram ameaçadoramente, deixando-me
assustado e tenso. Por que isso? Querem outro
exemplo? Digamos que eu esteja com pressa e
caminho velozmente pela calçada da Avenida
Copacabana: surgirá em minha frente um sujeito
[20] empurrando vagarosamente uma carrocinha de
sorvete e, se tento ultrapassá-lo pela direita, ele vira
para a direita; se tento pela esquerda, ele vira para
a esquerda! Parece perseguição, penso comigo,
esforçando-me para afastar a ideia maluca de que
[25] sou perseguido por alguma entidade maligna. Isso
me faz lembrar o caso de um sujeito que não saía
de casa com medo de sofrer algum acidente fatal.
Um dia, ele saiu e foi vítima de uma bala perdida.
Nada a ver comigo, que estou sempre na rua,
[30] como já se viu. E, se é na rua que essas coisas me
acontecem, nem por isso penso em me trancar em
casa. Mas, voltando à paranoia, meu carro agora
deu para furar o pneu. Faz seis meses, fui visitar
um amigo em Santa Teresa e deixei o carro junto
[35] ao meio-fio. Quando voltava para casa, percebi que
o pneu estava vazio e tive que trocá-lo sem ajuda
de ninguém, pois era tarde da noite e a rua estava
deserta.
Pois bem, a mesma coisa aconteceu-me semana
[40] passada, mas com uma pequena diferença: chovia,
ou melhor, caía um pé-d’água. A Cláudia estava
comigo e tínhamos ido ao lançamento do livro de
um amigo no Leblon. Para chegar à livraria, já foi
um desespero, porque, além de chover, era no
[45] começo da noite: engarrafamento para todos os
lados. É verdade que eu, mais uma vez, errei o
caminho, e por isso nos metemos numa enrascada
ainda maior. Na hora de estacionar, claro, não havia
lugar. Dei outra volta no quarteirão e consegui
[50] finalmente uma vaga para deixar o carro. E
exatamente lá havia um prego à minha espera. A
caminho de casa, mal andamos cinco quarteirões,
percebi que uma das rodas da frente apresentava
algum problema...
[55] – Pneu furado de novo? – pensei comigo. Não
acredito! Parece perseguição!
Meu primeiro impulso foi encostar o carro em
qualquer lugar, abandoná-lo ali e seguir para casa
de táxi. Mas logo pensei nas consequências futuras
[60] e me submeti: parei o carro e tratei de trocar o pneu
furado. É aquele negócio: afrouxa os parafusos,
levanta o carro com o macaco, tira o pneu furado...
Só que, quando peguei o estepe, verifiquei que ele
também estava vazio.
[65] – Não acredito – gritei – e sentei no meio-fio, a
ponto de começar a chorar. A chuva começou a cair
mais forte ainda.
Foi quando apareceram sete pessoas vestidas de
vermelho. Uma delas aproximou-se de mim e
[70] perguntou se eu precisava de ajuda.
– Somos os Anjos da Guarda – disse-me ele. E,
de fato, no peito de cada um deles havia a inscrição
“Anjos da Guarda”.
Esses anjos providenciais foram comigo até um
[75] posto de gasolina que havia a quatro esquinas dali,
enchemos o estepe e voltamos sorrindo debaixo do
aguaceiro. Eles puseram o pneu no lugar, guardaram
o furado e as ferramentas na mala do carro.
– Tudo pronto, amigo.
[80] Apertei-lhes a mão, mas a minha vontade era
beijá-los, um a um.
– Estamos sempre nas ruas para combater o
crime e prestar socorro a quem necessite – disse o
que falava português, porque os demais falavam
[85] espanhol e japonês.
– Foi muita sorte – disse Cláudia.
– Mas tenho que tomar cuidado – respondi. –
Todo o mundo só tem direito a um anjo da guarda.
Eu acabo de dispor de sete. Estourei minha cota!
GULLAR, Ferreira. Poesia completa, teatro e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
Em “Tudo pronto, amigo.” (linha 79), a função sintática da palavra sublinhada é