Texto I
Ninguém mora onde não mora ninguém
Nas grandes cidades, pessoas que não têm onde
morar são contraditoriamente chamadas de “moradores” de rua.
É um eufemismo que acoberta o quadro da injustiça social típica
das sociedades em fase de capitalismo selvagem, aquele no qual
a eliminação do outro é a regra. Que tantos e cada vez mais
vivam nas ruas é uma prova de que o famoso instinto gregário do
ser humano se esfacela, ou assume formas cada vez mais
enganadoras, porquanto mais voláteis em uma sociedade que é,
ao mesmo tempo, de massas e de indivíduos que não têm a
menor noção do que significa o outro.
O aumento das relações virtuais em detrimento das
relações “atuais” é a própria perversão das massas marcadas
pela anulação física individual em nome de um eu abstrato,
sustentado apenas como imagem, como avatar, e que tem como
correspondente um outro reduzido à sua mera abstração. Há,
certamente, exceções para a regra da distância com que o eu
mede o outro.
Dizem as pesquisas que o número de pessoas vivendo
sem teto cresceu nos últimos anos por causa do desemprego. E
são milhares. Motivos além do desemprego podem confundir
quanto ao sentido (e o sem sentido) da complexa experiência
vivida por essas pessoas. Afinal, pode-se encontrar entre os que
vivem nas ruas até mesmo quem não se sente em situação de
injustiça social.
A população das ruas das grandes cidades é composta
de habitantes (ou desabitantes) provisórios ou não, que estão ali
por motivos diversos. Muitas vezes são afetivos. Não é raro
encontrar ricas histórias de vida entre as pessoas sem morada,
desde aquele que renunciou à vida burguesa por considerá-la
insuportável, até quem, por meio de inesperadas leituras
filosóficas, criou um significado para o ato de “habitar” a
transitoriedade, ou seja, “desabitar” instransitivamente e estar
assim, na mera existência.
Que não habitar uma casa possa significar uma
experiência existencial é, no entanto, apenas a exceção que
confirma a regra da contemporânea injustiça social a cuja base
racional e afetiva tantos entregam as forças. Renunciar, desistir,
jogar a toalha, permitir-se a impotência como o Bartleby, de
Melville, ou o fracasso, como um dia afirmou J. L. Borges, pode
ser o único modo de viver em um mundo marcado pela
melancolia e pelo sem sentido em termos políticos, estéticos e
metafísicos.
O cenário social contemporâneo é o espaço e o tempo
dessa possibilidade de fracasso que diz respeito à potencialidade
mais profunda de nossos tempos. É a forma mais terrível do mal,
a da banalização que se estabelece na vida humana como força
lógica. Como um “deixar acontecer”, ao qual damos o nome de
“abandono”, esse ato de exílio, de ostracismo, de curiosa rejeição
sem ação. A mendicância das pessoas é apenas a verdade
íntima do capitalismo como mendicância da própria política
deixada a esmo em nome de antipolíticos interesses pessoais. A
mendicância é a imagem social das escolas, dos hospitais
públicos, do salário mínimo.
“Moradores de rua” são a figura mais perfeita do
abandono que está no imo da devoração capitalista. Convive-se
com eles nos bairros elegantes das cidades grandes como se
fossem um estorvo ou, para quem pensa de um modo mais
humanitário, como um problema social a ser resolvido
filantropicamente. Alguns moram em lugares específicos, têm sua
“própria” esquina, carregam objetos de uso aonde quer que vão;
outros perambulam a esmo, desaparecendo da vista de quem
tem onde morar. São meras fantasmagorias aos olhos de quem
não é capaz de supor sua alteridade. Esmagados pela
contradição de morar onde não mora ninguém, não têm o direito
de ser alguém. Partilham o deslugar. E, no entanto, praticam o
mesmo que os outros dentro de suas casas: dormem, comem,
fazem sexo. A condição humana é o que se divide por paredes
ou na ausência delas. A democracia torna-se uma questão de
nudez e exposição da vida íntima.
Ninguém “mora na rua”; antes, quem está na rua não
mora. Quem está fora dos básicos direitos constitucionais está
excluído da sociedade. E, muito mais além da Constituição, está
excluído pelo próprio status com que é medido. O status de
“morador de rua” é apenas um modo de incluir os excluídos na
ordem do discurso acobertadora do fascismo prático de cada dia,
oculto sob o véu da autista sensibilidade burguesa. Se o princípio
de autoconservação a qualquer custo é a base da ação de
indivíduos unidos na massa, está imediatamente perdida a
dimensão do outro sem a qual não podemos dizer que haja ética
ou política. Mesmo sob o status de m
orador de rua, o mendigo da
nossa esquina é a prova do fracasso de todos os sistemas. Se as
estatísticas não mudarem comprovando que a tendência da
exceção pode ser a regra, talvez a democracia de teto e paredes
não sirva mais a ninguém em breve. Só que às avessas.
TIBURI, Márcia. Ninguém mora onde não mora ninguém. Cult, São Paulo, n. 155, mar. 2011. Disponível em: <revistacult.uol.com.br/home/2011/03/ninguem-mora-onde-não-moraninguem/>.Acesso em: 06 fev. 2012. (Adaptado)
Quanto às normas gramaticais relacionadas ao uso dos sinais de pontuação, assinale a alternativa INCORRETA: