DIVAGAÇÕES SOBRE AS ILHAS
Quando me acontecer alguma pecúnia1, passante de um milhão de cruzeiros, compro uma ilha; não
muito longe do litoral, que o litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá possa eu aspirar a fumaça
e a graxa do porto. Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo ponto
de latitude e longitude que, pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado
[5] dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem
viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada confraternização.
De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamos sempre, inclusive
os mais agudos participantes. Objetais-me: “Como podemos amar as ilhas, se buscamos o centro
mesmo da ação?” Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável. Por onde
[10] fordes, ela irá convosco. Significa a evasão daquilo para que toda alma necessariamente tende, ou seja,
a gratuidade dos gestos naturais, o cultivo das formas espontâneas, o gosto de ser um com os bichos, as
espécies vegetais, os fenômenos atmosféricos. Substitui, sem anular. Que miragens vê o iluminado no
fundo de sua iluminação?... Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo
dos que mais o possuem. Nessa ilha tão irreal, ao cabo, como as da literatura, ele constrói a sua cidade
[15] de ouro, e nela reside por efeito da imaginação, administra-a, e até mesmo a tiraniza. Seu mito vale o
da liberdade nas ilhas. E, antagonista do mundo burguês, que outra coisa faz senão aplicar a técnica do
sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses se acomodam à realidade, esquecendo-a?
A ilha que traço agora a lápis neste papel é materialmente uma ilha, e orgulha-se de sê-lo. Pode ser
abordada. Não pode ser convertida em continente. Emerge do pélago2 com a graça de uma flor criada
[20] para produzir-se sobre a água. Marca assim o seu isolamento, e como não tem bocas de fogo nem
expedientes astuciosos para rechaçar o estrangeiro, sucede que este isolamento não é inumano.
Inumano seria desejar, aqui, dos morros litorâneos, um cataclismo que sovertesse3 tão amena,
repousante, discreta e digna forma natural, inventada para as necessidades do ser no momento exato
em que se farta de seus espelhos, amigos como inimigos.
[25] E por que nos seduz a ilha? As composições de sombra e luz, o esmalte da relva, a cristalinidade dos
regatos – tudo isso existe fora das ilhas, não é privilégio delas. A mesma solidão existe, com diferentes
pressões, nos mais diversos locais, inclusive os de população densa, em terra firme e longa. Resta ainda
o argumento da felicidade: “aqui eu não sou feliz”, declara o poeta, para enaltecer, pelo contraste, a sua
Pasárgada4: mas será que se procura realmente nas ilhas a ocasião de ser feliz, ou um modo de sê-lo? (...).
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Adaptado de Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979.
1Pecúnia: pagamento.
2Pélago: profundidade.
3Soverter: fazer desaparecer.
4Pasárgada: localidade fictícia em poema de Manuel Bandeira onde o eu lírico seria sempre feliz.
No texto, observa-se a criação de ilhas por meio do próprio processo de escrita do autor.
Esse processo está sintetizado no seguinte trecho: