(1) Como é possível uma modalidade esportiva surgida na Inglaterra, trazida ao Brasil em 1885, ter‐se tornado, já nos primeiros anos do século XX, tão popular? Embora o futebol tenha chegado ao Brasil por meio de jovens da classe alta, e as primeiras equipes tenham aparecido nos clubes cujos sócios representavam a elite da sociedade da época, já nos primeiros anos do século XX começaram a surgir equipes de futebol não pertencentes a colégios, fábricas ou clubes sociais de elite. Em 1923, no Rio de Janeiro, o Vasco da Gama venceu o campeonato estadual com um time composto por negros e mulatos – e pobres –, fato que incomodou dirigentes e torcedores que ainda tentavam manter o futebol como um esporte de brancos e de elite. Era a vitória da técnica dos jogadores populares sobre a imposição elitista ainda presa à tradição britânica. Em 1933, foi adotado o profissionalismo, com grande resistência daqueles que ainda pretendiam um certo purismo no futebol. O futebol brasileiro alcançava nessa época um estrondoso sucesso nacional, escapando ao controle de dirigentes de clubes ou diretores de escolas estrangeiras para ser praticado nas praias, campos de várzea, enfim por todo o país.
(2) Várias explicações podem ser atribuídas a essa popularização do futebol brasileiro. Uma delas seria o alto contingente negro na população nacional e a facilidade desta raça numa modalidade esportiva que tem nos pés seu principal instrumento de ação. Assim, seria própria dos negros uma disponibilidade corporal que os levaria a praticar atividades físicas rítmicas de forma mais coordenada. Nessa linha de raciocínio, explica‐se também a prática da capoeira, do samba e de outras danças originárias do continente africano. Os defensores dessa teoria sustentam as vantagens atléticas dos negros em competições esportivas, utilizando‐se de vários jogadores negros como exemplos, destacando‐se, dentre eles, Pelé. O problema dessa teoria é que ela remete a explicação da popularização do futebol no Brasil para o componente biológico da população negra, como se houvesse um gene para o futebol. A relação entre população negra e a prática do futebol existe, mas obviamente se deve não à dimensão congênita, e sim à maior concentração de negros e mulatos nas camadas populares.
(3) Outra linha de explicação para a popularização do futebol brasileiro seria a facilidade de prática desse esporte, quer em termos de regras, quer em termos de espaço e equipamentos. De fato, as regras do futebol são de fácil compreensão em relação aos outros esportes. Sua prática pode se dar em qualquer lugar – campo, quadra, praia, terreno baldio, rua – e a bola, o único material obrigatório, pode ser representada por uma bola de meia, de plástico, uma lata, uma tampinha etc. Com uniforme completo ou não, com bola de couro ou não, em um campo demarcado ou não, todos jogam futebol. Entretanto, essa facilidade de prática do futebol, se pode ser considerada facilitadora para sua popularização, não parece ser absoluta para podermos compreender a grande fama deste esporte no nosso país, uma vez que outras modalidades esportivas teriam chegado aqui na mesma época que o futebol, exigindo também poucos implementos e regras de fácil compreensão. De qualquer forma, não parece promissor explicar o futebol pelo que o diferencia das outras modalidades.
(4) Nem explicação biológica (as vantagens da raça negra), nem explicação funcionalista (a facilidade da prática do futebol). Sem entrarmos no mérito dessas duas teorias, parece ter havido uma combinação entre o código do futebol e o contexto cultural brasileiro. Em outros termos, o futebol demandaria um estilo de jogo, uma exigência técnica, uma eficácia e uma eficiência que se adequaram às características culturais do povo brasileiro. Assim, o novo esporte que chegava da Inglaterra não oferecia apenas momentos lúdicos de lazer aos seus praticantes, mas permitia principalmente a vivência de uma série de situações e emoções típicas do homem brasileiro. Isso explicaria o alto poder simbólico que o futebol foi adquirindo ao longo do século XX, passando a representar o homem brasileiro, da mesma forma que o fazem outros fenômenos nacionais, como o carnaval, por exemplo.
(5) Para explicar, então, o papel que o futebol representa no Brasil, defendemos que houve uma combinação entre as exigências técnicas do futebol e as características socioculturais do povo brasileiro. O futebol seria, ao mesmo tempo, um modelo da sociedade brasileira e um exemplo para ela se apresentar. Em outras palavras, o homem brasileiro se comportaria na vida como num jogo de futebol, com chances de ganhar ou perder – e às vezes empatar –, tendo que se defrontar com adversários, tendo que respeitar certas regras, mantendo respeito por uma autoridade constituída, jogando dentro de um tempo e de um espaço, marcando e sofrendo gols, fazendo jogadas de categoria e cometendo erros fatais. Após uma derrota, haveria sempre a chance de se recuperar no próximo jogo.
(6) Assim, o futebol brasileiro não é apenas uma modalidade esportiva com regras próprias, técnicas determinadas e táticas específicas; não é apenas manifestação lúdica do homem brasileiro; nem tampouco é o ópio do povo, como preferem alguns. Mais que tudo isso, o futebol é uma forma que a sociedade brasileira encontrou para se expressar. É uma maneira de o homem nacional extravasar características emocionais profundas, tais como paixão, ódio, felicidade, tristeza, prazer, dor, fidelidade, resignação, coragem, fraqueza e muitas outras. É, por fim, uma forma de cidadania e, nesse sentido, ele não é bom nem mau, certo ou errado, expressão generosa do povo brasileiro ou seu ópio.
Jocimar Daolio. Excerto adaptado de “As contradições do futebol brasileiro”. Disponível em:http://www.efdeportes.com/efd10/daolio1.htm. Acesso em: 21/06/2013.
Acerca de relações lógico-discursivas presentes no Texto 1, assinale a alternativa CORRETA.