Leia o texto.
ACIDENTE NA SALA
Ferreira Gullar
movo a perna esquerda
de mau jeito
e a cabeça do fêmur
atrita
com o osso da bacia
sofro um tranco
e me ouço
perguntar:
aconteceu comigo
ou com meu osso?
e outra pergunta:
eu sou meu osso?
ou sou somente a mente
que a ele não se junta?
e outra:
se osso não pergunta,
quem pergunta?
alguém que não é osso
(nem carne)
em mim habita?
alguém que nunca ouço
a não ser quando
em meu corpo
um osso com outro osso atrita?
(GULLAR, Ferreira. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015, p. 569.)
Sendo o poema um gênero privilegiado para a verificação do uso de elementos linguísticos como expedientes expressivos, são feitas as seguintes afirmações críticas sobre os recursos estilísticos mobilizados no texto de Gullar:
I. Enquanto a repetição das consoantes s, ç e ss apoia a ideia do corpo como um mecanismo cujo funcionamento segue um ritmo normal, a recorrência do r, sobretudo acompanhado de outras consoantes, como t e f, reforça sonoramente a ocorrência de um mau jeito, tal como no sexto verso do poema.
II. Se o acidente em ambiente doméstico leva o eu-lírico a perceber uma dissociação física entre parte e todo, o desencontro ganha contornos existenciais mais amplos, expressos em dúvidas acerca das distinções carne/espírito, corpo e mente.
III. Expressando-se em primeira pessoa, o eu-lírico dialoga com um outro sujeito para o qual indaga, sem obter resposta definitiva, acerca do sentido da existência, formulando seguidas interrogações de cunho filosofante.
É correto o que se afirma em