TEXTO I
O texto que segue é o capítulo LXVIII do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
O VERGALHO
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeumas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir, gemia somente estas únicas palavras:
- “Não, perdão, meu senhor; meu senhor perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor, gemia o outro.
- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, - o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
- É, sim, nhonhô.
- Fez-te alguma coisa?
- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber
- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra pra casa, bêbado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio, achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!
Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo, Ática, 1995. p. 100-1.
Levando em conta o texto na sua totalidade, podemos dizer que nele: