[01] Carta do escritor Graciliano Ramos ao pintor Cândido Portinari
[02] Rio – 18 – Fevereiro – 1946
[03] Caríssimo Portinari:
[04] A sua carta chegou muito atrasada, e receio que esta resposta
[05] já não o ache fixando na tela a nossa pobre gente da roça. Não há
[06] trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas e
[07] exibimos deformações; contudo as deformações e miséria existem
[08] fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram.
[09] O que às vezes pergunto a mim mesmo, com angústica, Portinari,
[10] é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar?
[11] Desejamos realmente que elas desapareçam ou seremos também
[12] uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos
[13] desgraças? Dos quadros que você mostrou quando almocei no Cosme
[14] Velho pela última vez, o que mais me comoveu foi aquela mãe com
[15] a criança morta. Saí de sua casa com um pensamento horrível:
[16] numa sociedade sem classes e sem miséria seria possível fazer-se
[18] aquilo? Numa vida tranquila e feliz que espécie de arte surgiria?
[19] Chego a pensar que faríamos cromos, anjinhos cor-de-rosa, e isto
[20] me horroriza.
[21] Felizmente a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a
[22] suprimirá. E seríamos ingratos se desejássemos a supressão dela,
[23] não lhe parece? Veja como os nossos ricaços em geral são burros.
[24] Julgo naturalmente que seria bom enforcá-los, mas se isto nos
[25] trouxesse tranquilidade e felicidade, eu ficaria bem desgostoso,
[26] porque não nascemos para tal sensaboria. O meu desejo é que,
[27] eliminados os ricos de qualquer modo e os sofrimentos causados
[28] por eles, venham novos sofrimentos, pois sem isto não temos arte.
[28] E adeus, meu grande Portinari. Muitos abraços para você e para
[29] Maria.
Graciliano
sensaboria: contratempo, monotonia
Depreende-se corretamente do texto que o escritor Graciliano Ramos: