TEXTO A
... ela puxava os cabelos e batia nos peitos:
— Ai, Archanjo, meu santo, por que não disse
que estava doente? Como eu ia saber? Agora Ojuobá,
como vai ser? Tu era a luz da gente, nossos olhos de
[5] ver, nossa boca de falar. Tu era a coragem da gente e
nosso entendimento. Tu sabia de ontem, e de amanhã,
quem mais vai saber? [...]
Mestre Pedro Archanjo ia contente da vida,
contente da morte: aquela viagem de defunto em carroça
[10] aberta, puxada por burro de guizos no pescoço, com
acompanhamento de bêbados, notívagos, putas e
amigos, na frente do cortejo o guarda Everaldo trinando
seu apito, atrás o soldado batendo continência, ah! Essa
curta viagem parecia invenção sua, pagodeira para
[15] registro na caderneta, para relato na mesa do amalá,
na quarta-feira de Xangô. [...]
A igreja toda azul, no meio da tarde, igreja dos
escravos no largo onde se ergueram tronco e pelourinho.
É o reflexo do sol ou um laivo de sangue no chão de
[20] pedras? Tanto sangue correu sobre essas pedras, tanto
gemido de dor subiu para esse céu, tanta súplica e
tanta praga ressoaram nas paredes da igreja azul do
Rosário dos pretos. [...]
Lá dentro, Pedro Archanjo pronto para o enterro.
[25] Limpo e bem trajado, decente.
AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 36, p. 39 e p. 42.
TEXTO B
— Por que pregar susto na gente, Berrito
desgraçado. Tu bem sabe que tenho o coração fraco, o
médico me recomendou que não me aborrecesse. Cada
ideia tu tem, como posso viver sem tu, home com parte
[5] com o tinhoso? Tou acostumada com tu, com as coisas
malucas que tu diz, tua velhice sabida, teu jeito tão sem
jeito, teu gosto de bondade. Por que tu me fez isso
hoje? [...]
Quincas não respondia: aspirava o ar marítimo, uma
[10] de suas mãos tocava a água, abrindo um risco nas
ondas. [...]
Foi assim que o temporal, o vento uivando, as águas
encrespadas, os alcançou em viagem. As luzes da Bahia
brilhavam na distância, um raio rasgou a escuridão. A
[15] chuva começou a cair. [...] Ninguém sabe como Quincas
se pôs de pé, encostado à vela menor. [...]
Foi quando cinco raios sucederam-se no céu, a
trovoada reboou num barulho de fim de mundo, uma onda
sem tamanho levantou o saveiro. Gritos escaparam das
[20] mulheres e dos homens. A gorda Margô exclamou:
— Valha-me nossa Senhora!
No meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em
perigo, à luz dos raios, viram Quincas atirar-se e ouviram
sua frase derradeira.
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 88, p. 89 e p. 90.
São evidências do caráter fantástico das duas narrativas os trechos indicados em
TEXTO:
A cidade invisível e a cidade dissimulada
Salvador é uma cidade dissimulada. Jamais é o
que se diz dela, jamais se apresenta ao olhar em toda
sua plenitude. Como cidade barroca, é preciso que
todos os sentidos estejam atentos, aguçados e que,
[5] além deles, a imaginação permita brincar em seus jogos
de luz e sombra.
Salvador se apresentou a nós recusando todos
os estereótipos: nem todo mundo é de Oxum, nem
todos são católicos e muitos dos que o são também
[10] não são tão católicos assim; nem é para todos a terra
da felicidade, só para ficarmos nesses encantamentos.
A cidade de beira-mar, de vista para o mar, tem
também seus lugares centrais, suas cumeadas,
encostas e baixadas, cuja paisagem são casas, casas
[15] e mais casas, na movimentação morfológica dos sítios,
revelando suas fachadas, laterais e fundos
descarnados, sem reboco e sem cores de enfeite,
apenas o vermelho pálido dos blocos expostos e as
cores opacas da miséria sem maquiagem.
[20] A Cidade da Bahia é desigual e conflituosa. Alegre
e triste, rica, pobre e miserável.
Poderíamos levantar, como hipótese, que a
baianidade, como estilo de vida, está muito longe de
ser a imagem folclorizada de um povo lento, e até
[25] mesmo preguiçoso, sensual e devotado ao misticismo
e à voluptuosidade. É o cosmopolitismo, a capacidade
de digerir o diferente e internalizá-lo como coisa sua, e
de não poder ser definida como um tipo, como uma
representação em um único ícone, que faz da cidade
[30] da Bahia essa singularidade.
No campo social, a maioria da população
negro-mestiça continua a sofrer os efeitos da
escravidão, do peculiar e perverso processo de
libertação e das formas mais diversas de inserção
[35] étnica na economia de mercado, nos mais plurais
campos de interação social. São, em sua maioria, os
mais pobres, os menos tocados pelos mecanismos
institucionalizados de ascensão social. No campo
cultural, por sua vez, representam a própria identidade
[40] de Salvador e sua produção cultural tem lugar
privilegiado no mercado dos bens simbólicos.
A Velha Cidade, ainda em sua antiguidade
recente, era mimética em sua apropriação. Reduto da
burguesia colonial e remanescente no final do século
[45] XIX, tornou-se local de menos prestígio e consideração
e passou a multiplicar os espaços internos de suas
moradias para acolher gente mais pobre e cada vez
mais numerosa, gente de vida cada vez mais incerta
em busca de um lugar seguro. Essa gente se foi,
[50] desbotando a paisagem humana, substituída pelo
colorido vivíssimo de tantos azuis, verdes, amarelos e
rosas, entremeados de brancos estampados nas
fachadas desse casario recomposto ou refeito na
apressada restauração do Patrimônio da Humanidade.
[55] Quase em silêncio, não fossem os tambores do
Olodum, da Banda Didá e de outros grupos musicais,
também o toque dos berimbaus e o cântico de tantas
oficinas de música a compor a sonoridade de uma
época em que a indústria cultural investe pesado,
[60] retirando da tradição afro-brasileira sons e danças a
inovar, a cada instante, o repertório musical nacional.
A ilusão do Pelourinho negro/pardo/mulato chega
mesmo a parecer verdadeira, tal é a vitalidade dos
espetáculos e dos atores em cena para configurar, no
[65] cenário urbano colonial, a apresentação de uma peça
de época. Predomina, entretanto, a cultura hegemônica
europeizada/americanizada/moderna sobre a
afro-brasileira. São essas pessoas, muitas de fora,
que dominam o comércio lúdico/artístico/artesanal. Os
[70] negros pardos e mulatos estão lá trabalhando para servir
à indústria cultural, aos de fora, muitas vezes
fantasiados de negros, representando o exótico na
imagem de uma Bahia que poderia, muito bem, ser
reproduzida num quadro temático da Disneylândia, ou
[75] de uma escola de samba do Rio de Janeiro ou de São
Paulo.
A cidade invisível fere os olhos, extrai lágrimas,
mas também provoca o riso e excita. A velha Cidade
da Bahia é também moça, sensual, sedutora. É, toda
[80] ela, mistério, porque se recusa a ser desvendada.
ESPINHEIRA, Gey. A cidade invisível e a cidade dissimulada. In: LIMA, Paulo Costa (Org.) Quem faz Salvador? Salvador: UFBA, 2002. p. 24-34 (passim).
No título, os adjetivos “invisível” e “dissimulada” antecipam a perspectiva do texto, que é a de
TEXTO:
A cidade invisível e a cidade dissimulada
Salvador é uma cidade dissimulada. Jamais é o
que se diz dela, jamais se apresenta ao olhar em toda
sua plenitude. Como cidade barroca, é preciso que
todos os sentidos estejam atentos, aguçados e que,
[5] além deles, a imaginação permita brincar em seus jogos
de luz e sombra.
Salvador se apresentou a nós recusando todos
os estereótipos: nem todo mundo é de Oxum, nem
todos são católicos e muitos dos que o são também
[10] não são tão católicos assim; nem é para todos a terra
da felicidade, só para ficarmos nesses encantamentos.
A cidade de beira-mar, de vista para o mar, tem
também seus lugares centrais, suas cumeadas,
encostas e baixadas, cuja paisagem são casas, casas
[15] e mais casas, na movimentação morfológica dos sítios,
revelando suas fachadas, laterais e fundos
descarnados, sem reboco e sem cores de enfeite,
apenas o vermelho pálido dos blocos expostos e as
cores opacas da miséria sem maquiagem.
[20] A Cidade da Bahia é desigual e conflituosa. Alegre
e triste, rica, pobre e miserável.
Poderíamos levantar, como hipótese, que a
baianidade, como estilo de vida, está muito longe de
ser a imagem folclorizada de um povo lento, e até
[25] mesmo preguiçoso, sensual e devotado ao misticismo
e à voluptuosidade. É o cosmopolitismo, a capacidade
de digerir o diferente e internalizá-lo como coisa sua, e
de não poder ser definida como um tipo, como uma
representação em um único ícone, que faz da cidade
[30] da Bahia essa singularidade.
No campo social, a maioria da população
negro-mestiça continua a sofrer os efeitos da
escravidão, do peculiar e perverso processo de
libertação e das formas mais diversas de inserção
[35] étnica na economia de mercado, nos mais plurais
campos de interação social. São, em sua maioria, os
mais pobres, os menos tocados pelos mecanismos
institucionalizados de ascensão social. No campo
cultural, por sua vez, representam a própria identidade
[40] de Salvador e sua produção cultural tem lugar
privilegiado no mercado dos bens simbólicos.
A Velha Cidade, ainda em sua antiguidade
recente, era mimética em sua apropriação. Reduto da
burguesia colonial e remanescente no final do século
[45] XIX, tornou-se local de menos prestígio e consideração
e passou a multiplicar os espaços internos de suas
moradias para acolher gente mais pobre e cada vez
mais numerosa, gente de vida cada vez mais incerta
em busca de um lugar seguro. Essa gente se foi,
[50] desbotando a paisagem humana, substituída pelo
colorido vivíssimo de tantos azuis, verdes, amarelos e
rosas, entremeados de brancos estampados nas
fachadas desse casario recomposto ou refeito na
apressada restauração do Patrimônio da Humanidade.
[55] Quase em silêncio, não fossem os tambores do
Olodum, da Banda Didá e de outros grupos musicais,
também o toque dos berimbaus e o cântico de tantas
oficinas de música a compor a sonoridade de uma
época em que a indústria cultural investe pesado,
[60] retirando da tradição afro-brasileira sons e danças a
inovar, a cada instante, o repertório musical nacional.
A ilusão do Pelourinho negro/pardo/mulato chega
mesmo a parecer verdadeira, tal é a vitalidade dos
espetáculos e dos atores em cena para configurar, no
[65] cenário urbano colonial, a apresentação de uma peça
de época. Predomina, entretanto, a cultura hegemônica
europeizada/americanizada/moderna sobre a
afro-brasileira. São essas pessoas, muitas de fora,
que dominam o comércio lúdico/artístico/artesanal. Os
[70] negros pardos e mulatos estão lá trabalhando para servir
à indústria cultural, aos de fora, muitas vezes
fantasiados de negros, representando o exótico na
imagem de uma Bahia que poderia, muito bem, ser
reproduzida num quadro temático da Disneylândia, ou
[75] de uma escola de samba do Rio de Janeiro ou de São
Paulo.
A cidade invisível fere os olhos, extrai lágrimas,
mas também provoca o riso e excita. A velha Cidade
da Bahia é também moça, sensual, sedutora. É, toda
[80] ela, mistério, porque se recusa a ser desvendada.
ESPINHEIRA, Gey. A cidade invisível e a cidade dissimulada. In: LIMA, Paulo Costa (Org.) Quem faz Salvador? Salvador: UFBA, 2002. p. 24-34 (passim).
O segundo e o terceiro parágrafo do texto, respectivamente, desfazem estereótipos comumente atribuídos a Salvador no que diz respeito
TEXTO:
A cidade invisível e a cidade dissimulada
Salvador é uma cidade dissimulada. Jamais é o
que se diz dela, jamais se apresenta ao olhar em toda
sua plenitude. Como cidade barroca, é preciso que
todos os sentidos estejam atentos, aguçados e que,
[5] além deles, a imaginação permita brincar em seus jogos
de luz e sombra.
Salvador se apresentou a nós recusando todos
os estereótipos: nem todo mundo é de Oxum, nem
todos são católicos e muitos dos que o são também
[10] não são tão católicos assim; nem é para todos a terra
da felicidade, só para ficarmos nesses encantamentos.
A cidade de beira-mar, de vista para o mar, tem
também seus lugares centrais, suas cumeadas,
encostas e baixadas, cuja paisagem são casas, casas
[15] e mais casas, na movimentação morfológica dos sítios,
revelando suas fachadas, laterais e fundos
descarnados, sem reboco e sem cores de enfeite,
apenas o vermelho pálido dos blocos expostos e as
cores opacas da miséria sem maquiagem.
[20] A Cidade da Bahia é desigual e conflituosa. Alegre
e triste, rica, pobre e miserável.
Poderíamos levantar, como hipótese, que a
baianidade, como estilo de vida, está muito longe de
ser a imagem folclorizada de um povo lento, e até
[25] mesmo preguiçoso, sensual e devotado ao misticismo
e à voluptuosidade. É o cosmopolitismo, a capacidade
de digerir o diferente e internalizá-lo como coisa sua, e
de não poder ser definida como um tipo, como uma
representação em um único ícone, que faz da cidade
[30] da Bahia essa singularidade.
No campo social, a maioria da população
negro-mestiça continua a sofrer os efeitos da
escravidão, do peculiar e perverso processo de
libertação e das formas mais diversas de inserção
[35] étnica na economia de mercado, nos mais plurais
campos de interação social. São, em sua maioria, os
mais pobres, os menos tocados pelos mecanismos
institucionalizados de ascensão social. No campo
cultural, por sua vez, representam a própria identidade
[40] de Salvador e sua produção cultural tem lugar
privilegiado no mercado dos bens simbólicos.
A Velha Cidade, ainda em sua antiguidade
recente, era mimética em sua apropriação. Reduto da
burguesia colonial e remanescente no final do século
[45] XIX, tornou-se local de menos prestígio e consideração
e passou a multiplicar os espaços internos de suas
moradias para acolher gente mais pobre e cada vez
mais numerosa, gente de vida cada vez mais incerta
em busca de um lugar seguro. Essa gente se foi,
[50] desbotando a paisagem humana, substituída pelo
colorido vivíssimo de tantos azuis, verdes, amarelos e
rosas, entremeados de brancos estampados nas
fachadas desse casario recomposto ou refeito na
apressada restauração do Patrimônio da Humanidade.
[55] Quase em silêncio, não fossem os tambores do
Olodum, da Banda Didá e de outros grupos musicais,
também o toque dos berimbaus e o cântico de tantas
oficinas de música a compor a sonoridade de uma
época em que a indústria cultural investe pesado,
[60] retirando da tradição afro-brasileira sons e danças a
inovar, a cada instante, o repertório musical nacional.
A ilusão do Pelourinho negro/pardo/mulato chega
mesmo a parecer verdadeira, tal é a vitalidade dos
espetáculos e dos atores em cena para configurar, no
[65] cenário urbano colonial, a apresentação de uma peça
de época. Predomina, entretanto, a cultura hegemônica
europeizada/americanizada/moderna sobre a
afro-brasileira. São essas pessoas, muitas de fora,
que dominam o comércio lúdico/artístico/artesanal. Os
[70] negros pardos e mulatos estão lá trabalhando para servir
à indústria cultural, aos de fora, muitas vezes
fantasiados de negros, representando o exótico na
imagem de uma Bahia que poderia, muito bem, ser
reproduzida num quadro temático da Disneylândia, ou
[75] de uma escola de samba do Rio de Janeiro ou de São
Paulo.
A cidade invisível fere os olhos, extrai lágrimas,
mas também provoca o riso e excita. A velha Cidade
da Bahia é também moça, sensual, sedutora. É, toda
[80] ela, mistério, porque se recusa a ser desvendada.
ESPINHEIRA, Gey. A cidade invisível e a cidade dissimulada. In: LIMA, Paulo Costa (Org.) Quem faz Salvador? Salvador: UFBA, 2002. p. 24-34 (passim).
Sobre aspectos da cidade destacados no texto, está correto o que se afirma em
I. A singularidade da Cidade da Bahia está vinculada a seu papel histórico, reconhecido como o de superar as mazelas e heranças do colonialismo e da escravidão.
II. O autor desfaz uma imagem folclorizada da cidade, bastante difundida, de que o baiano é um povo lento, e sensual, voltado para a música e as festas, e pouco afeito ao trabalho.
III. No sétimo parágrafo, o autor apresenta os processos de substituição de grupos humanos numa parte da Velha Cidade, com a burguesia cedendo lugar aos pobres e a expulsão recente desses últimos.
IV. A população negro-mestiça de Salvador, através de sua herança histórico-cultural, conseguiu gradualmente superar os efeitos da escravidão, inserindo-se de forma autônoma e bem sucedida na economia do mercado turístico.
V. Apesar de pouco visível, na cidade do Salvador subjaz o domínio de uma cultura exógena, hegemônica e moderna, em detrimento da tradição afro-brasileira, que é utilizada apenas como fachada e elemento exótico para consumo externo.
A alternativa em que todas as afirmativas indicadas estão corretas é a
TEXTO:
A cidade invisível e a cidade dissimulada
Salvador é uma cidade dissimulada. Jamais é o
que se diz dela, jamais se apresenta ao olhar em toda
sua plenitude. Como cidade barroca, é preciso que
todos os sentidos estejam atentos, aguçados e que,
[5] além deles, a imaginação permita brincar em seus jogos
de luz e sombra.
Salvador se apresentou a nós recusando todos
os estereótipos: nem todo mundo é de Oxum, nem
todos são católicos e muitos dos que o são também
[10] não são tão católicos assim; nem é para todos a terra
da felicidade, só para ficarmos nesses encantamentos.
A cidade de beira-mar, de vista para o mar, tem
também seus lugares centrais, suas cumeadas,
encostas e baixadas, cuja paisagem são casas, casas
[15] e mais casas, na movimentação morfológica dos sítios,
revelando suas fachadas, laterais e fundos
descarnados, sem reboco e sem cores de enfeite,
apenas o vermelho pálido dos blocos expostos e as
cores opacas da miséria sem maquiagem.
[20] A Cidade da Bahia é desigual e conflituosa. Alegre
e triste, rica, pobre e miserável.
Poderíamos levantar, como hipótese, que a
baianidade, como estilo de vida, está muito longe de
ser a imagem folclorizada de um povo lento, e até
[25] mesmo preguiçoso, sensual e devotado ao misticismo
e à voluptuosidade. É o cosmopolitismo, a capacidade
de digerir o diferente e internalizá-lo como coisa sua, e
de não poder ser definida como um tipo, como uma
representação em um único ícone, que faz da cidade
[30] da Bahia essa singularidade.
No campo social, a maioria da população
negro-mestiça continua a sofrer os efeitos da
escravidão, do peculiar e perverso processo de
libertação e das formas mais diversas de inserção
[35] étnica na economia de mercado, nos mais plurais
campos de interação social. São, em sua maioria, os
mais pobres, os menos tocados pelos mecanismos
institucionalizados de ascensão social. No campo
cultural, por sua vez, representam a própria identidade
[40] de Salvador e sua produção cultural tem lugar
privilegiado no mercado dos bens simbólicos.
A Velha Cidade, ainda em sua antiguidade
recente, era mimética em sua apropriação. Reduto da
burguesia colonial e remanescente no final do século
[45] XIX, tornou-se local de menos prestígio e consideração
e passou a multiplicar os espaços internos de suas
moradias para acolher gente mais pobre e cada vez
mais numerosa, gente de vida cada vez mais incerta
em busca de um lugar seguro. Essa gente se foi,
[50] desbotando a paisagem humana, substituída pelo
colorido vivíssimo de tantos azuis, verdes, amarelos e
rosas, entremeados de brancos estampados nas
fachadas desse casario recomposto ou refeito na
apressada restauração do Patrimônio da Humanidade.
[55] Quase em silêncio, não fossem os tambores do
Olodum, da Banda Didá e de outros grupos musicais,
também o toque dos berimbaus e o cântico de tantas
oficinas de música a compor a sonoridade de uma
época em que a indústria cultural investe pesado,
[60] retirando da tradição afro-brasileira sons e danças a
inovar, a cada instante, o repertório musical nacional.
A ilusão do Pelourinho negro/pardo/mulato chega
mesmo a parecer verdadeira, tal é a vitalidade dos
espetáculos e dos atores em cena para configurar, no
[65] cenário urbano colonial, a apresentação de uma peça
de época. Predomina, entretanto, a cultura hegemônica
europeizada/americanizada/moderna sobre a
afro-brasileira. São essas pessoas, muitas de fora,
que dominam o comércio lúdico/artístico/artesanal. Os
[70] negros pardos e mulatos estão lá trabalhando para servir
à indústria cultural, aos de fora, muitas vezes
fantasiados de negros, representando o exótico na
imagem de uma Bahia que poderia, muito bem, ser
reproduzida num quadro temático da Disneylândia, ou
[75] de uma escola de samba do Rio de Janeiro ou de São
Paulo.
A cidade invisível fere os olhos, extrai lágrimas,
mas também provoca o riso e excita. A velha Cidade
da Bahia é também moça, sensual, sedutora. É, toda
[80] ela, mistério, porque se recusa a ser desvendada.
ESPINHEIRA, Gey. A cidade invisível e a cidade dissimulada. In: LIMA, Paulo Costa (Org.) Quem faz Salvador? Salvador: UFBA, 2002. p. 24-34 (passim).
A análise dos fragmentos do texto está correta em
I. A ideia sugerida pela expressão “peça de época” (l. 65-66) vai ser retomada e reforçada mais adiante, com a referência a negros, pardos e mulatos trabalhando e “fantasiados de negros” (l. 72).
II. A referência a “quadro temático da Disneylândia” (l. 74) reforça a ideia de qualidade e representatividade das manifestações culturais apresentadas para consumo de turistas.
III. O uso da expressão “desbotando a paisagem humana” (l. 50) estabelece um contraste com o “colorido vivíssimo” (l. 51) das fachadas do casario restaurado no Pelourinho.
IV. Em “multiplicar os espaços internos de suas moradias” (l. 46-47), há uma referência à ocupação dos espaços de habitação do Pelourinho pela “burguesia colonial e remanescente” (l. 44).
V. A expressão “mas também” (l. 78) estabelece um contraste que destaca os aspectos atraentes e fascinantes que integram o imaginário sobre a cidade de Salvador.
A alternativa em que todas as afirmativas indicadas estão corretas é a
TEXTO:
A cidade invisível e a cidade dissimulada
Salvador é uma cidade dissimulada. Jamais é o
que se diz dela, jamais se apresenta ao olhar em toda
sua plenitude. Como cidade barroca, é preciso que
todos os sentidos estejam atentos, aguçados e que,
[5] além deles, a imaginação permita brincar em seus jogos
de luz e sombra.
Salvador se apresentou a nós recusando todos
os estereótipos: nem todo mundo é de Oxum, nem
todos são católicos e muitos dos que o são também
[10] não são tão católicos assim; nem é para todos a terra
da felicidade, só para ficarmos nesses encantamentos.
A cidade de beira-mar, de vista para o mar, tem
também seus lugares centrais, suas cumeadas,
encostas e baixadas, cuja paisagem são casas, casas
[15] e mais casas, na movimentação morfológica dos sítios,
revelando suas fachadas, laterais e fundos
descarnados, sem reboco e sem cores de enfeite,
apenas o vermelho pálido dos blocos expostos e as
cores opacas da miséria sem maquiagem.
[20] A Cidade da Bahia é desigual e conflituosa. Alegre
e triste, rica, pobre e miserável.
Poderíamos levantar, como hipótese, que a
baianidade, como estilo de vida, está muito longe de
ser a imagem folclorizada de um povo lento, e até
[25] mesmo preguiçoso, sensual e devotado ao misticismo
e à voluptuosidade. É o cosmopolitismo, a capacidade
de digerir o diferente e internalizá-lo como coisa sua, e
de não poder ser definida como um tipo, como uma
representação em um único ícone, que faz da cidade
[30] da Bahia essa singularidade.
No campo social, a maioria da população
negro-mestiça continua a sofrer os efeitos da
escravidão, do peculiar e perverso processo de
libertação e das formas mais diversas de inserção
[35] étnica na economia de mercado, nos mais plurais
campos de interação social. São, em sua maioria, os
mais pobres, os menos tocados pelos mecanismos
institucionalizados de ascensão social. No campo
cultural, por sua vez, representam a própria identidade
[40] de Salvador e sua produção cultural tem lugar
privilegiado no mercado dos bens simbólicos.
A Velha Cidade, ainda em sua antiguidade
recente, era mimética em sua apropriação. Reduto da
burguesia colonial e remanescente no final do século
[45] XIX, tornou-se local de menos prestígio e consideração
e passou a multiplicar os espaços internos de suas
moradias para acolher gente mais pobre e cada vez
mais numerosa, gente de vida cada vez mais incerta
em busca de um lugar seguro. Essa gente se foi,
[50] desbotando a paisagem humana, substituída pelo
colorido vivíssimo de tantos azuis, verdes, amarelos e
rosas, entremeados de brancos estampados nas
fachadas desse casario recomposto ou refeito na
apressada restauração do Patrimônio da Humanidade.
[55] Quase em silêncio, não fossem os tambores do
Olodum, da Banda Didá e de outros grupos musicais,
também o toque dos berimbaus e o cântico de tantas
oficinas de música a compor a sonoridade de uma
época em que a indústria cultural investe pesado,
[60] retirando da tradição afro-brasileira sons e danças a
inovar, a cada instante, o repertório musical nacional.
A ilusão do Pelourinho negro/pardo/mulato chega
mesmo a parecer verdadeira, tal é a vitalidade dos
espetáculos e dos atores em cena para configurar, no
[65] cenário urbano colonial, a apresentação de uma peça
de época. Predomina, entretanto, a cultura hegemônica
europeizada/americanizada/moderna sobre a
afro-brasileira. São essas pessoas, muitas de fora,
que dominam o comércio lúdico/artístico/artesanal. Os
[70] negros pardos e mulatos estão lá trabalhando para servir
à indústria cultural, aos de fora, muitas vezes
fantasiados de negros, representando o exótico na
imagem de uma Bahia que poderia, muito bem, ser
reproduzida num quadro temático da Disneylândia, ou
[75] de uma escola de samba do Rio de Janeiro ou de São
Paulo.
A cidade invisível fere os olhos, extrai lágrimas,
mas também provoca o riso e excita. A velha Cidade
da Bahia é também moça, sensual, sedutora. É, toda
[80] ela, mistério, porque se recusa a ser desvendada.
ESPINHEIRA, Gey. A cidade invisível e a cidade dissimulada. In: LIMA, Paulo Costa (Org.) Quem faz Salvador? Salvador: UFBA, 2002. p. 24-34 (passim).
Há uma afirmação correta sobre as expressões destacadas e seu uso no texto em
I. Na linha 3, o termo “plenitude” significa originalidade, como atributo da cidade.
II. “descarnados” (l. 17) refere-se às paredes das casas, destituídas de revestimento.
III. “único ícone” (l. 29) é uma referência à impossibilidade de a cidade ser representada por um único signo.
IV. “hegemônica” (l. 66) é uma qualidade atribuída à cultura, por seu poder de eliminar oposições entre manifestações culturais de épocas diferentes.
V. A expressão “aos de fora” (l. 71) constitui uma remissão aos colonizadores portugueses que se apropriaram das manifestações culturais autóctones
A alternativa em que todas as afirmativas indicadas estão corretas é a