Ensaio sobre a cegueira
Gosto dos romances e dos filmes apocalípticos, ou seja, das histórias em que algum tipo de fim do mundo (guerra nuclear, invasão extraterrestre, epidemia etc.) nos força a encarar uma versão laica e íntima do Juízo Final. Nessa versão, Deus não avalia nosso passado, mas, enquanto o mundo desaba, nosso desempenho mostra quem somos realmente. No desamparo, quando o tecido social se esfarela e as normas perdem força e valor, conhecemos, enfim, nosso estofo “verdadeiro”. Somos capazes do melhor ou do pior: o apocalipse nos testa e nos revela.
O primeiro romance apocalíptico (de 1826) talvez tenha sido “O Último Homem”, de Mary Shelley, que é também a autora de “Frankenstein”. De fato, as duas obras são animadas pelo mesmo sonho: uma criatura radicalmente nova pode ser fabricada em um necrotério ou nascer das cinzas da civilização. Em ambos os casos, ela será sem história, sem ascendência, sem comunidade e, portanto, penosamente livre. No romance de Shelley, aliás, a causa da catástrofe é uma epidemia, como no “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago, que é agora levado para o cinema por Fernando Meirelles.
A obra de Meirelles é fiel ao livro que a inspira, mas, para contar a mesma história, consegue inventar uma eloqüência própria. Por exemplo, banha o filme uma luz esbranquiçada e difusa que não é apenas (como muitos apontaram) uma evocação da cegueira branca que aflige a humanidade: é a atmosfera ordinária de nosso universo desbotado, em que a trivialidade do cotidiano desvanece os contrastes – até que as sombras e os brilhos sejam revelados na “hora do vamos ver”, que acontece, paradoxalmente, porque todos (ou quase todos) perdem a visão.
No “Ensaio sobre a Cegueira”, diferente do que acontece em muitas narrativas apocalípticas, a heroína é uma mulher, e as mulheres são as depositárias da esperança; elas saem engrandecidas pelas provas da situação extrema. São elas que, para o bem de todos, entregam-se aos estupradores, aviltando não elas mesmas, mas os que as violentam, com uma coragem que salienta a covardia dos maridos ciumentos ou zelosos de sua “honra”. São elas que sabem cuidar de uma criança ou matar quando é preciso. São elas que reinventam a amizade em algumas cenas memoráveis do filme.
Aviso, caso, um dia, a gente tenha que recomeçar tudo do zero: em geral, as mulheres sabem, melhor do que os homens, o que é essencial na vida.
(Contardo Calligaris. Folha de S.Paulo, 18.09.2008. Adaptado)
O autor apresenta uma explicação particular para a luz esbranquiçada que banha o filme, entendendo-a como