Leia o trecho do conto “O alienista”, de Machado de Assis (1839-1908), para responder à questão.
De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam1 loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco2 e vilão3 , que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos4 de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano5 . O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!
– Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos os dias.
– Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe…
– Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica, e disso trato…
– Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!
[…]
A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe6 , que narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:
– Deus engendrou7 um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.
Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:
– Deus engendrou um ovo, o ovo etc.
Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus. Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científico.
(Papéis avulsos, 2011.)
1 afluir: chegar.
2 bronco: tosco; destituído de cultura.
3 vilão: desprezível.
4 recamo: adorno, enfeite.
5 Cícero, Apuleio e Tertuliano: três dos maiores oradores da Antiguidade.
6 algibebe: vendedor de roupas de tecido barato; mascate.
7 engendrar: criar.
O chamado discurso indireto livre constitui uma construção em que a voz da personagem se mescla à voz do narrador. Verifica-se a ocorrência de discurso indireto livre em: